É muito comum ouvir-se dizer que nos anos da troika a redução do défice orçamental foi conseguida em dois terços à custa de aumentos de impostos e apenas em um terço com redução de despesa. Isto quando se sabe que o programa de ajustamento previa o contrário: uma redução do défice que fosse o resultado em três quartos de redução da despesa e em um quarto de aumento da receita.

Hoje, quando se discute o assunto, estas fracções são um dado adquirido. Por exemplo, há umas semanas, no relatório de auto-avaliação do FMI, Eichenbaum, Rebelo e Resende dão como certo que, na prática, dois terços do esforço orçamental foram feitos à conta da subida de impostos e que apenas um terço resultou de uma redução da despesa. Perante isto, membros e apoiantes do anterior governo sentem necessidade de se justificar e, tipicamente, desculpam-se com as decisões do Tribunal Constitucional.

Na verdade, este facto está tão enraizado nas nossas cabeças que tanto eu como os meus co-autores do livro Crise e Castigo ficámos admirados quando vimos os números da despesa e da receita pública. Entre 2010 e 2014, a despesa pública primária (ou seja, sem contar com os juros) caiu um pouco mais de 8 mil milhões de euros. A receita aumentou ligeiramente acima de 4 mil milhões. Fazendo as contas, a conclusão é imediata: o ajustamento orçamental feito nos anos da troika foi de dois terços do lado da despesa e apenas um terço por via da receita.

Fica por esclarecer por que motivo tantas pessoas têm a ideia errada relativamente a este assunto. É possível que a fonte do erro tenha a ver com o facto de estarmos habituados a trabalhar com percentagens e rácios. Ora, entre 2010 e 2014, a receita aumentou de 40,6% para 44,5% do PIB (ou seja, um aumento de 3,9 pontos percentuais) e a despesa primária caiu de 46,2% para 43,2% (ou seja, uma redução de 3 pontos percentuais). Se as contas fossem feitas com estas variações em pontos percentuais, concluir-se-ia que a maioria do ajustamento (55%) era do lado da receita. Mas esta ilação é um mero artefacto estatístico. É o resultado de o PIB ter caído neste período. A redução do denominador magnifica o efeito do aumento da receita e, simultaneamente, minimiza o efeito da redução da despesa. Já se o PIB se tivesse mantido constante, o resultado seria exactamente igual ao do parágrafo anterior. (E, naturalmente, se o PIB tivesse aumentado, concluir-se-ia que a redução da despesa teria contribuído ainda mais do que os famosos dois terços.)

Portanto, na minha opinião, do ponto de vista orçamental, entre 2010 e 2014, dois terços do ajustamento foram feitos do lado da despesa e não da receita. Todos sabemos que uma mentira repetida muitas vezes se torna a verdade oficial, mas, ainda assim, tenho dificuldades em perceber por que motivo os apoiantes do PSD/CDS entregam de mão-beijada este pseudo-facto.

P.S.: Um item importante nesta redução da despesa pública são os cortes salariais dos funcionários públicos. E, confesso, tenho algumas dúvidas sobre como contabilizar esta medida. Para todos os efeitos orçamentais relevantes, um corte dos salários da função pública é indistinguível de um aumento dos impostos sobre os funcionários públicos. Já não teria dúvidas se a redução salarial tivesse sido o resultado de uma reestruturação séria das carreiras dos funcionários públicos. Mas, ainda assim, se eu fosse um apoiante da PàF, não entregaria este argumento de barato.

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