Com a convocação de eleições legislativas pelo Presidente da República, face ao chumbo do Orçamento do Estado para 2022, estamos provavelmente perante o cenário político mais imprevisível de que há memória desde que a Democracia estabilizou em Portugal, sendo que até às eleições passarão dias e dias de autêntico wrestling político que nada ficará a dever ao WWE que ainda hoje (inexplicavelmente, diga-se) passa na SportTV.

Para isso contribui o facto de haver várias circunstâncias político-partidárias que se encontram ainda por definir. Não sabemos, por exemplo, qual é a perceção maioritária das pessoas que nas últimas eleições votaram na esquerda (Bloco, PCP e PS) relativamente à quota-parte de responsabilidade de cada partido pelo chumbo do Orçamento. Desconhecemos também quem serão os líderes do PSD e do CDS a apresentar-se a eleições. Também não fazemos ideia se estes dois partidos vão resolver sujeitar-se a escrutínio juntos ou separados. Várias incógnitas, entre outras, que serão condimentadas pela voragem noticiosa diária e pelas próprias sondagens que poderão ir influenciado estados de alma e posições a assumir.

Há, no entanto, algo de que podemos ter mais certezas: as circunstâncias atuais.

O Partido Socialista governou durante 6 anos, o que parece corresponder ao prazo de validade de qualquer Governo PS. Foi assim com Guterres e com Sócrates. É novamente assim com Costa. 6 anos desgastam sempre qualquer Governo, mesmo que a governação até seja vista como razoável. Só Cavaco Silva (e, provavelmente, de forma irrepetível) governou mais tempo em Portugal.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Neste período, o Governo teve de lidar com uma pandemia que expôs algumas das suas fragilidades, apesar de ter contado com a anuência do PSD para grande parte das medidas adotadas e com uma boa dose de tolerância de um povo que, salvo algumas exceções, compreendeu a urgência e necessidade das decisões que foram sendo tomadas.

Foi uma governação sem uma maioria confortável, sempre sujeita aos humores dos partidos à sua esquerda que, de há uns anos para cá, assistem à fuga do seu eleitorado e fazem pesar essa circunstância em todas as decisões que tomam, tentando esticar a corda o máximo possível por altura das negociações do Orçamento. Afinal, a partir do momento em que se mostraram disponíveis para deixar o PS formar Governo, a perda de intenções de voto tornou-se quase inevitável, especialmente no caso do PCP, apenas sobrando a dúvida sobre qual das posições lhes tiraria ainda mais eleitorado: manter o apoio ou retirar o tapete ao PS.

O Governo está macerado pelo tempo, pelas circunstâncias mas também pela sua própria governação. Mostrou-se incapaz de resolver vários dos problemas com os quais o país lida há vários anos, com a Justiça à cabeça, mas também a ausência de tecido industrial que gere riqueza para o país, a mobilidade, a habitação, a desertificação do interior (que, citando Herman José, continua “desquecido e ostracizado”), entre outros dramas congénitos deste país que parecem insolucionáveis por qualquer Governo que tome posse.

Ademais, o executivo tem a sua imagem desgastada, com ministros mal apreciados pela população em geral, que incompreensivelmente não foram substituídos durante todo este tempo. Aliás, se soubesse o que sabe hoje, possivelmente o Primeiro-Ministro tê-los-ia substituído antes das eleições autárquicas.

Face a este cenário, é natural que os portugueses pensem numa alternativa e a procurem à direita. Mas quem poderia ser essa alternativa?

O PSD passou os primeiros dois anos da Geringonça a gritar contra a “usurpação de poder” e os restantes quatro basicamente à espera que o poder lhe caísse no colo, sem propor uma medida que fosse para solucionar os problemas de base do país que o PS se mostrou incapaz de resolver. Pelo meio elegeu um líder que, pese embora, simpático e terra-a-terra, não é “prime-minister material” (citando José Eduardo Martins) e que se revelou um falso moderado, nunca tendo negado entendimentos com o Chega, materializando-os mesmo nos Açores. Aliás, sobre este ponto, diga-se que, apesar de a oposição interna do PSD ter negado a possibilidade de se entender com o Chega, poucos têm dúvidas que se chegar o dia em que o PSD precise da direita radical e populista para formar Governo, dificilmente hesitará muito em socorrer-se da mesma. As coisas mudam e, na realidade, nem há dois anos Rangel (apesar de não querer o Chega como muleta) dizia que até então não via fascismo em André Ventura. Isto ao mesmo tempo que dizia apoiar Rui Rio. Curioso, no mínimo.

O CDS perdeu espaço político e não consegue mostrar em que é diferente dos restantes partidos à direita. Mais conservador que o PSD, menos liberal que a Iniciativa Liberal, menos intolerante que o Chega? Não é suficiente. Entretanto, o partido tornou-se na Turma do Chicão que assiste à debandada de militantes reconhecidos e num concurso de masoquismo para o qual concorrem dois candidatos que, quase inevitavelmente, vão conduzir o partido à sua pré-extinção. O CDS é hoje uma espécie de adaptação à realidade da série alemã Dark (spoiler alert). Nesta, a certa altura, a personagem principal descobre que existem Universos paralelos em que vivem as mesmas pessoas mas a ordem de acontecimentos de cada Universo é diferente por força de determinado elemento disruptivo. Pese embora essa diferença, inevitavelmente, e por mais esforços que a personagem envide, em ambos os Universos dá-se o apocalipse.

Já a Iniciativa Liberal assenta a sua ideologia promotora do egoísmo social no pressuposto erróneo de que a obtenção de sucesso e riqueza resulta exclusivamente do mérito de cada cidadão. Uma ideologia que, curiosamente, é normalmente perfilhada por gente nascida em berço de ouro construído não pelo seu mérito mas pelo eventual mérito dos seus ascendentes. Na realidade, a IL ignora, consciente ou inconscientemente, que, sem um Estado social interventivo, o fosso entre ricos e pobres vai aumentar, não diminuir. No entanto, se a política fosse um concurso de marketing, a IL ganharia com alguma facilidade. Basta ver a imensa maturidade com que organizou um comício em pandemia com arcos e flechas de brincar apontados a imagens de ministros, ou a sua aposta em slogans (para os quais arrasta toda a direita) desprovidos de adesão à realidade, como o facto de gritar “socialismo” em tudo o que o PS faz. Convém lembrar que o PS é tão socialista como o Autódromo do Estoril é no Estoril, a República Democrática da Coreia é democrática ou o CDS-Partido Popular é popular (nas várias aceções da palavra).

Relativamente ao Chega já quase tudo se disse, mas é sempre conveniente lembrar que este partido é uma amálgama de gente pouco recomendável que se diz antissistema mas que, afinal, apenas quer comer do mesmo bolo. Um partido que promete atufar a Assembleia da República de fascistas convictos e encartados e que assenta o seu discurso populista em gritaria e ódio xenófobo, racial e, agora mais que nunca, homofóbico. Basta ver a forma como Ventura apelidou Rangel de “frouxo (em todos os sentidos)”.

Enfim, Mahatma Gandhi sabiamente dizia que “temos de nos tornar na mudança que queremos ver”. Eu diria que, enquanto vamos tentando perceber qual é a mudança que queremos ver, convém não mudar para pior ou, citando, José Régio, “não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí”.