Francis M. Comford, no ensaio Plato’s Commonwealth (1935), observou que a morte de Péricles e a Guerra do Peloponeso originaram uma separação, irreversível, entre o entendimento dos homens do pensamento e dos homens da politika sobre os princípios de governação da polis. Hannah Arendt aprofundou esta questão (‘The Human Condition’, 1958), ilustrando-a, embora superficialmente conforme a própria reconheceu, com a diferença entre imortalidade e eternidade. Para os gregos, a mortalidade dos homens emerge da sua condição biológica, característica única num universo onde tudo é imortal. Todavia, apesar desta condição, os homens são capazes de registos indeléveis. Já a eternidade requer a centralidade da contemplação metafísica como condição sine qua non, sem a “perversão” de qualquer indício da vita activa, para o atingir da singularidade perfeita.

As implicações do desenvolvimento tecnológico na sociedade, considerando, entre outros, progressos em áreas como a medicina, biotecnologia, nanotecnologia e inteligência artificial (IA), e a frágil preparação dos nossos representantes eleitos relativamente aos possíveis efeitos desta (r)evolução não auguram um bom futuro.

Esta discrepância é facilmente perceptível. Um exemplo é a perda de postos de trabalho para a robótica. Ora, se a substituição da mão-de-obra humana não é novidade desde os anos 60 do século passado, por que razão são estas novas máquinas um problema? Porque são máquinas capazes de dispensar a mão-de-obra humana especializada e forçar a passagem da produção colaborativa centralizada para a descentralizada. Não estamos perante uma mera mecanização ou automatização. É urgente perceber que esta nova geração de robots são autênticos sistemas físicos cibernéticos que não serão confinados à indústria. Logo, a substituição do trabalho humano acontecerá a uma escala impensável até agora.

Não deixa de ser interessante notar que nesta problemática gravitam os ciclos de Nikolai Kondratiev e de Raymond Vernon, cujos períodos temporais estão a ser reduzidos devido ao acelerar da descoberta científica e da evolução da tecnologia. Também por essa razão devem ser ouvidos os avisos de Kai Fu-Lee. Tanto por governos como por CEO! Os efeitos da robótica não se restringirão à perda de empregos executados por humanos, à aplicação de impostos sobre as máquinas ou à eventual introdução dum rendimento básico universal. Há muito mais a considerar. Inclusive aquilo que entendemos ser e definimos como “ser humano”.

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É sobre este âmbito que pretendo reflectir. Mas primeiro é necessário perceber que existe uma diferença entre IA e amplificação de inteligência (AI). O primeiro termo foi cunhado por John McCarthy enquanto que o outro deriva dos trabalhos de William Ross Ashby, J. C. R. Licklider e Douglas Engelbart. Podemos também distinguir ambos os conceitos considerando que IA estará mais ligado às máquinas e AI ao desenvolvimento de meios que permitam recuperar ou ultrapassar os limites do corpo humano.

Esta distinção exige algumas ponderações. Primeiro, se utilizarmos a expressão “consciência em máquinas” estamos a considerar a transferência da consciência humana para uma máquina e não a hipótese da emergência em si mesma. Esta possibilidade é defendida e estudada há anos por Raymond Kurzweil (The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology, 2005), cujas ideias, com os desenvolvimentos da IA e dos avanços na neurociência, receberam um impulso substancial. Segundo, a eventualidade de emergência, i.e., de uma máquina alcançar autoconsciência por si própria (Daniel C. Dennett, Douglas R. Hofstadter, The Mind’s I, 1981). Por fim, a solução que tem sido advogada por Elon Musk, a aplicação de chips no cérebro humano que viabilizem o aumento de inteligência de modo a mitigar a obsolescência do homem face às máquinas inteligentes (neste ponto, a criação dum homem avançado através da tecnologia, também é importante não negligenciar o leque de circunstâncias que emergem agora com a ectogénese).

Se tivermos em conta as ideias de Peter Singer, qualquer uma destas hipóteses – uma máquina consciente, uma máquina como recipiente duma consciência ou um homem ciborgue – coloca dilemas e um novo entendimento. Porém, há quem defenda que estamos muito longe destas possibilidades (Kenneth D. Miller) e quem afirme que, independentemente do progresso, a consciência jamais será totalmente compreendida ao nível cientifico (Colin McGinn). Aliás, o que McGinn sustenta é equivalente à contemplação metafísica referida por Arendt, a singularidade perfeita que nada tem a ver com as noções de Kurzweil.

É curioso notar que todas estas alternativas já foram exaustivamente abordadas pela ficção científica. Só no universo Star Trek existem várias referências: Clindar, o planeta das máquinas-vivas que transformou a sonda Voyager 6 num organismo artificial consciente – V’ger – que, todavia, só após a fusão com um ser humano atinge a transcendência; os Borg, uma espécie de organismos cibernéticos que procura assimilar todas as especificidades biológicas e tecnológicas para materializar a sua visão de perfeição; e Data, um androide anatómico, autoconsciente, sapiente e senciente totalmente funcional.

No conto de Isaac Asimov, The Bicentennial Man and Other Stories (1976), Andrew, um robot da série NDR, que desde o momento em que é activado pela família Martin percebe ter características muito próprias, não partilhadas por qualquer outro robot, procura, ao fim de dois séculos – um período em que para além de adquirir autoconsciência sobre a sua condição e individualidade também desenvolve novos órgãos biomecânicos que diluem a separação entre humanos e robots – ser reconhecido como ser humano. Todavia, perante o congresso mundial, os seus pedidos são inicialmente recusados porque, segundo o presidente desta autoridade, a sociedade pode estar preparada para tolerar uma máquina eterna, mas jamais tolerará um ser humano imortal. Só após prescindir do seu “cérebro positrónico”, e passar a vivenciar o processo de envelhecimento que culmina com a morte, é que Andrew vê reconhecida a sua humanidade. É importante notar que o reconhecimento que Andrew procurava exigiu a condição de mortalidade.

À semelhança do que aconteceu com a ovelha Dolly (1996), que abriu a porta à clonagem humana, as considerações aqui expressas levantam a questão da personalidade e de outras capacidades jurídicas. Mas não se ficam por aí. Também colocam em causa a definição do que é um ser humano! Como tal, esta reflexão não visa as implicações decorrentes das atribulações do Andrew de Asimov ou do Data de Gene Roddenberry. Não. Trata-se precisamente do oposto. De levantar o véu sobre as consequências duma potencial imortalidade e da impreparação dos nossos representantes políticos relativamente às mesmas.

Isto é pura ficção, podem pensar. Será? A história demonstra que a improbabilidade tem a propensão para se transformar numa possibilidade que mais cedo ou mais tarde é uma inevitabilidade. Como reagirá a sociedade a uma máquina consciente, a uma consciência humana numa máquina e/ou a um homem 2.0? E como poderão ser definidos e classificados? Terão deveres e direitos? Estas e outras perguntas pedem reflexão e não reacção.

O futuro terá sempre uma componente desconhecida. Mas também tem certezas. Uma delas é que o futuro pode ser ponderado. Outra, infelizmente, é que o horizonte político apenas perspectiva a legislatura. Mais do que isso costuma ser heresia, perpetuando nos nossos dias a separação descrita por Comford. Oxalá assim não continue porque os efeitos desta (r)evolução devem ser devidamente pensados e preparados.

P.S. – o mundo perdeu Stephen Hawking, um homem que sempre incentivou o pensamento crítico e que nunca deixou de considerar as possibilidades. Sobre a IA, Hawking afirmou o seguinte: “Some people say that computers can never show true intelligence whatever that may be. But it seems to me that if very complicated chemical molecules can operate in humans to make them intelligent then equally complicated electronic circuits can also make computers act in an intelligent way. And if they are intelligent they can presumably design computers that have even greater complexity and intelligence.” Mas também deixou avisos como, entre outros, a constatação que existem avanços científicos e tecnológicos que acontecem quer queiramos ou não e que a IA poderá ser a melhor ou a pior coisa que a humanidade já fez. Obrigado Professor Stephen Hawking. Tenho a certeza que uma mente inquieta como a sua não está a relaxar. Assim, que o seu corpo descanse em paz!

Vicente Ferreira da Silva é politólogo e professor convidado EEG/UMinho