Presidente da República e Governo convergiram na opção de não renovar, pela terceira vez, o estado de emergência. Ao que parece, pelo que se percebeu das declarações do PR, aquela opção justifica-se pelo propósito, compreensível, de evitar a banalização do estado de emergência.

Sucede que o Governo, com a concordância expressa do PR, pretende que a cessação do estado de emergência constitucional não envolva uma descontinuação de importantes restrições e ingerências em direitos fundamentais consentidas pelo direito excecional que emergiu da declaração de estado de emergência e das suas renovações. Muitas das vozes que se têm feito ouvir consideram juridicamente impossível a adoção de medidas gerais de imposição de confinamento obrigatório, de um dever geral de recolhimento ou de proibição ou de restrição circulação fora do quadro específico do estado de emergência constitucional. Além de outros argumentos talvez menos relevantes, diz-se que só o estado de emergência autoriza a suspensão de direitos fundamentais e que só esta suspensão permite ingerências e restrições como as indicadas.

Ora, não é assim: se é verdade que só o estado de emergência autoriza a suspensão do exercício de direitos fundamentais, já está longe de se poder dizer que só essa suspensão autoriza ingerências e restrições no exercício de direitos fundamentais. Considerando exclusivamente as ingerências e restrições de carácter excecional, de emergência, podem as mesmas ser determinadas em concreto pelo Governo, em aplicação de “leis gerais da República”: referimo-nos a leis – como a lei de bases da proteção civil, a lei de bases da saúde ou o regime do sistema de vigilância em saúde pública – que autorizam, de forma aliás expressa e inequívoca, a adoção de medidas excecionais de recorte muito variado e com âmbito nacional, em caso de “emergência de saúde pública” ou de “catástrofe”. Nos termos destes diplomas, estabelece-se, por exemplo, que “o membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de atividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infeção ou contaminação”; por sua vez, a declaração da situação de calamidade, pelo Conselho de Ministros, pode estabelecer: “a) a mobilização civil de pessoas, por períodos de tempo determinados; b) afixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos; c) a fixação de cercas sanitárias e de segurança; d) a racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade”.

Quer isto dizer que existe, legalmente estruturado, um “direito ordinário da emergência”, que define os termos de decretamento de um “estado de emergência administrativa” (que se pode contrapor ao “estado de emergência constitucional”). E, se bem vemos a questão, a resposta certa para sinalizar o início do processo de transição para o novo normal que se aproxima deverá consistir precisamente em sair da emergência constitucional, definida e balizada por um direito de exceção, para uma emergência administrativa, definida por um direito ordinário (produzido segundo os canais normais de produção do direito).

Reconhece-se, todavia, a legitimidade da dúvida sobre se as permissões legais existentes para a adoção de medidas excecionais no quadro da declaração de calamidade ou de emergência de saúde pública autorizam, em especial, o decretamento administrativo de ingerências e restrições como o confinamento obrigatório, o dever geral de recolhimento ou a obrigação do uso de máscaras de proteção em locais públicos. Em razão do impacto e da amplitude ou grau de intrusão que implicam nos direitos dos cidadãos, trata-se de providências que podem ver-se questionadas por se entender não estarem habilitadas, por exemplo, pelas normas que conferem ao membro do Governo responsável pela área da saúde competência para a adoção de “medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública”. Contudo, para ultrapassar estes e outros défices pontuais do direito ordinário da emergência, a solução adequada, no atual contexto, não residiria em prolongar o estado de emergência constitucional, mas antes em promover, com a necessária urgência, as alterações desse direito ordinário (lei de bases da proteção civil e regime jurídico do sistema de vigilância em saúde pública). Alcançar-se-ia, por esta via, o consenso e a responsabilização dos órgãos de soberania para definir um quadro legal que possa responder à situação atual de epidemia e a uma eventual segunda vaga.

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