Este ano culminou numa grande festa, há algum tempo esperada: o casamento de um dos meus melhores amigos. Não imagino melhor desfecho para este tempo de Natal e de fim de ano do que poder testemunhar a união de duas pessoas que se amam muito, querem fundar uma família e viver a vida ao lado um do outro.

Ele é meu amigo há quase duas décadas e ela entrou na minha vida pela mão e pelo coração dele. Um e outro são pessoas admiráveis. Fascinantes na alegria, na ternura, na simplicidade, na generosidade, no acolhimento e na cumplicidade com que fazem suas as pessoas e as coisas que até aqui eram apenas de cada um. Falo das famílias e dos círculos de amigos, mas também das rotinas, dos objetos e peças que compõem uma casa que se partilha.

Ele teve um grande acidente quando ainda era adolescente e, num instante, toda a sua realidade mudou. Nada do que ele foi até ali continuou a ser como era. Passou meses em hospitais, foi submetido a cirurgias e terapias, fez longas recuperações no Alcoitão e saiu de tudo isto inteiro e vertical, apesar de ter ficado tetraplégico.

Quando digo vertical estou a usar a metáfora que mais se lhe aplica, pois embora tenha deixado de poder caminhar pelo seu pé e viva sentado numa cadeira de rodas, continua a ser uma das pessoas mais verticais e livres que conheço. Chego a esquecer-me que não se levanta sozinho da sua cadeira e raramente me lembro que depende de terceiros para quase tudo, tal é a sua atitude na vida.

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Embora tenha acabado de casar, acho que não corro o risco de ser mal interpretada se disser que é, também, um dos homens mais bonitos que conheço. Muito elegante e realmente bonito, tem um sorriso belíssimo e os olhos muito brilhantes, mas a sua maior beleza transparece, emana do seu coração. Como diria a Mafaldinha, lendária personagem de Quino, é um daqueles bonitos double-face: por fora e por dentro.

Aos 16 anos a sua vida podia ter parado e não parou. Muito pelo contrário, ganhou um novo rumo e, arrisco dizer, um novo alento. Transformou o meu amigo num verdadeiro dínamo humano que fundou uma associação e usou toda a sua experiência de dependência para libertar outros, com menos possibilidades que ele, das amarras visíveis e invisíveis que os prendem. Poderia ter sido apenas mais um a lutar corajosa e incessantemente para superar os seus próprios obstáculos, as suas dificuldades diárias, mas cedo se apercebeu que as suas fragilidades eram também as suas forças.

Experimentou na pele aquilo que muitos têm dificuldade em aceitar e alguns consideram cliché, porque a célebre frase de São Paulo — “é quando somos fracos que somos fortes” — lhes soa a frase feita. O meu amigo foi capaz de ver forças na sua fragilidade adquirida e isso permitiu-lhe elevar-se acima das suas circunstâncias. Foi por ter ficado dependente de terceiros para quase tudo que conseguiu encontrar forças para ajudar outros como ele a voltarem a uma vida ativa e mais realizada.

Consciente de que há demasiadas pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida que ficam fechadas em casa, porventura à janela, a ver a vida acontecer, criou uma associação que promove o desporto e as atividades ao ar livre. Fundou uma organização em rede que valida talentos e competências para que mais pessoas estigmatizadas ou consideradas diferentes sejam integradas nas empresas. Inaugurou um conjunto de programas de apoio, mas também desenvolveu sistemas de pesquisa e identificação de restaurantes e outros espaços públicos de acesso fácil para que mais pessoas possam ter uma vida autónoma.

Criou tudo isto e muito mais há quase duas décadas. A associação cresce de ano para ano e o meu amigo passou a contar os seus próprios anos em função das conquistas das pessoas, das famílias e dos projetos que apoia. Interessa-lhe muito mais esta contagem do que a dos anos que já leva na cadeira de rodas, que são mais do que aqueles que viveu antes do acidente.

Vi o meu amigo fazer-se homem ao longo destes anos todos (nunca o conheci sem ser na cadeira de rodas) e vi-o fazer sacrifícios inimagináveis sem uma queixa. Estive ao seu lado — muitas vezes à sua cabeceira — em fases dificílimas de atravessar, em tempos de lágrimas, perplexidade e dor, quando o pai morreu subitamente também num acidente, com apenas cinquenta anos. Estivemos juntos e voltamos a estar em momentos de grandes alegrias e dramáticas perdas.

Há muitos anos que somos amigos e vivemos com grande proximidade. Rezamos juntos, viajamos juntos, passamos férias com amigos comuns, na mesma casa. Tudo isto permite conhecer bem a fibra do meu amigo e conferir no dia a dia a sua motivação de fundo. Aquilo que o faz acordar de manhã para se sentar invariavelmente na sua cadeira de rodas mantendo a tal verticalidade de que falo e é feita de atitude positiva, lucidez e discernimento. Uma atitude só possível quando se cultiva a aceitação e se treina a paciência. Todo este treino deu ao meu amigo um endurance extraordinário, mas também um coração maduro e sábio.

Nunca saberei o que é ficar tetraplégico e completamente dependente, mas já prometi a mim própria que se por alguma razão me acontecer perder a liberdade de movimentos, terei neste e noutros amigos em iguais circunstâncias os meus modelos de vida. Por agora vivo uma vida sem condicionantes físicas e dou graças por isso todos os dias. Mais, agradeço o exemplo quotidiano deste meu amigo e de outros como ele, com a fibra dele (por incrível que pareça, tenho mais 6 amigos que ficaram em cadeira de rodas devido a acidentes ou doenças) por serem verdadeiras referências e autênticos guias. Por me ajudarem a relativizar muita coisa e me impedirem de me queixar por tudo e por nada.

Agora que já casou com a sua jovem e adorável mulher e ambos inauguram uma nova família, todos nós, os amigos do círculo íntimo e alargado continuamos sob efeito da maior festa que este fim de ano nos poderia trazer. Ele é, como disse, cheio de beleza e santidade, mas também ela é bonita double-face, tem um coração igualmente inteligente e santo. Merecem-se. E merecem ser muito felizes porque se cada um, sozinho, já fazia a diferença no mundo resgatando os mais frágeis, excluídos, carentes e doentes, juntos vão fazer uma verdadeira revolução.