Nos tempos passados, quando o bobo da corte dizia alguma coisa que não agradava ao czar russo, arriscava-se a ser severamente castigado e maltratado. Hoje, o senhor do Kremlin ignora os avisos e deixa para os seus domados “rouxinóis” a tarefa de abafar as palavras do bobo.

Durante uma visita ao cosmódromo “Vostok”, no Extremo Oriente russo, Vladimir Putin declarou indignado: “Já foi dito cem vezes: trabalhem de forma transparente, o dinheiro investido é muito, o projecto tem, na prática, um carácter nacional, mas roubam às centenas de milhões”. Acrescentou ainda que “já foram abertos várias dezenas de processos-crime, os tribunais ditaram sentenças, há pessoas na prisão, mas não foi possível restabelecer a ordem”.

Dmitri Peskov, principal rouxinol do Kremlin, veio “atirar água para a fervura”: “No total foram roubados 11 mil milhões de rublos (cerca de 137,5 milhões de euros). Foram restituídos 3,5 mil milhões de rublos (43, 7 milhões de euros)… Para a construção foram atribuídos 91 mil milhões de rublos (1 137,5 milhões de euros).

Dmitri Rogozin, político nacionalista e chauvinista, que Vladimir Putin colocou há muito à frente da ROSKOSMOS (Agência Espacial Russa) para pôr ordem na conquista do Espaço, ainda foi ao ponto de desmentir o líder russo: “Não há qualquer razão para preocupações de que o dinheiro está a ser gasto de forma ineficaz, por enquanto não temos quaisquer factos preocupantes”.

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E o que diz o bobo?

A 2 de Outubro, Maksim Galkin, conhecido cómico russo, deu um espectáculo que alguém filmou com o telemóvel e publicou partes nas redes sociais. Aí, ele parece ter revelado as verdadeiras causas da corrupção e do ambiente irrespirável que se sente na sociedade russa.

Galkin chamou a atenção para a forma vergonhosa como os canais de televisão russos desviam a atenção dos problemas do país: “Passam a vida a falar da Ucrânia. Já estou farto disso, pois eu não vivo na Ucrânia. Porque passamos o tempo a falar nela? Falem de nós. Fica-se com a impressão que no nosso país está tudo bem e resta-nos apenas ajudar os ucranianos”.

Depois de denunciar a censura nos órgãos de informação russos, o cómico coloca o dedo na principal ferida: “Hoje existe censura, nem tudo pode ser dito dos ecrãs televisivos. Mas eu compreendo-os, hoje a situação no nosso país é complexa… Nunca foi simples. Claro que Vladimir Vladimirovitch [Putin] é porreiro, já está há 20 anos no poder, ele já ultrapassou Brejnev [antigo secretário-geral do Partido Comunista da URSS que governou entre 1964 e 1982]. Claro que ele percebe melhor do que nós, porque há muito que é assim. Claro que ele se sente entediado com estes líderes mundiais, pois são pessoas ingénuas, são substituídas de quatro em quatro anos…”.

“No nosso país já toda uma geração de pessoas nasceu, estudou e já tem filhos, tudo na era de Putin, nem sequer conhece outro presidente, pensa que o próprio cargo se chama “Putin”. “Putin” é um cargo e “Putin” só pode ser Putin. E está tudo certo. O povo sempre teve uma inclinação para o czar”, acrescentou.

E será possível contrapor ou desmentir estas palavras de Dmitri Galkin: “Resumindo, ele [Putin] tem cá uma experiência! Sabe já como abrir caminhos e do que é que os reformados precisam… Ele compreende tudo. Até sabe onde é que as cegonhas devem pôr os ovos”.

O dirigente russo até pode gostar de humor (não sabemos porque esse é um dos muitos segredos de Estado), mas os “fiéis rouxinóis” não podiam deixar de responder às “calúnias” do bobo.

“Em geral, a Rússia é campeã do mundo na liberdade de expressão. No nosso país pode-se dizer tudo o que vem à cabeça na televisão, não sendo limitado nem pelas tradições, nem pelo politicamente correcto. Por nada. Por isso é estranho falar de censura”, declarou Dmitri Kissilov, director da agência internacional de informação “Russia Today” e vice-director do Comité Público de Rádio e Televisão da Rússia.  Num dos seus programas de análise política, ameaçou transformar os Estados Unidos em poeira radioactiva.

Não quero acreditar que Vladimir Putin faça calar o cómico, mas certamente não lhe dará ouvidos, pois, como afirma Dmitri Galkin, o czar “sente-se entediado connosco. Somos chatos, temos problemas, não gostamos das pensões. Ali não fizemos bem, aqui não fizemos bem. Mas ele pensa com outras dimensões, ele, na sua cabeça, já conquista Marte”.

Embora não espere para breve na Rússia um movimento cívico de protesto como aquele que obrigou o Presidente boliviano, Evo Morales, a renunciar ao poder, considero que Putin deveria pensar nisso, mas talvez não o faça, pois pode ainda não pensar em Marte, mas “está na Lua”.

P.S. É impressionante ver a forma como a elite política espanhola está a gerir os destinos do seu país. Na luta mesquinha e cega pelo poder, os partidos do chamado “arco governamental” estendem o tapete à extrema-direita. Isto passa-se em Espanha, aqui ao lado. Enquanto isso, no nosso país, um canal televisivo público de informação suspendeu o debate sobre os resultados eleitorais em Espanha para anunciar e comentar o resultado do jogo do Sporting-Belenenses. Depois não nos queixemos.