Há uma palavra feia, corrente nas redes sociais a propósito do governo: estertor.

Verdade seja dita que quase todos os governos em Portugal tiveram a sua fase estertorosa. Há mais de 2 anos que se fala disso a propósito do governo Passos Coelho, em funções há… 3 (basta googlar “estertor governo” para o confirmar).

Permitam-me que ligue o memoriómetro (desculpem os leitores a liberdade vocabular):

2 dedos espetados em chifre e Manuel Pinho “já era”. Poucas horas depois os portugueses, ainda a discutir se o gesto simulava chifres ou cornos (mais uma vez as minha desculpas), sabiam da passagem do ministro à condição de ex-ministro. Sobrava a minudência de conhecer se a demissão fora da iniciativa do próprio ou de José Sócrates, mas o essencial estava consumado. Isso sucedeu em Julho de 2009, a poucos meses das eleições legislativas de 27 de Setembro; destas resultaria um governo de maioria relativa com a duração de cerca de ano e meio. O estertor da governação socialista durou pois 2 anos, pelo menos. A responsabilidade principal terá sido a relatividade da sua maioria, mas pode questionar-se se essa relatividade não terá sido causada em parte pelo estertor da governação.

Não é inédito. Recorde-se por exemplo a longa degradação do segundo governo de Guterres, com os episódios limianos, a fundação para a prevenção rodoviária, as demissões de Jorge Coelho e sobretudo a de uma ressentida ministra da saúde Manuela Arcanjo, sem falar na acusação de Veiga Simão a Guterres de “conduta imoral” por este não o ter defendido aquando da sua demissão como ministro da defesa, causada pelo escândalo das “listas de espiões” em 1999. É o tempo do que Guterres chamou de “pântano político”, a culminar um longo estertor.

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O final dos 2 mandatos e meio de Cavaco Silva foi igualmente penoso. O estertor do cavaquismo é simbolizado de forma exemplar pelo bloqueio da ponte sobre o Tejo no dia 24 de Junho de 1994. É o tempo dos escândalos na primeira página do Independente, dos títulos irónico-devastadores (“Ponte Socorro”, idem), o início da tabloidização da imprensa portuguesa; o tempo do começo do fim do mais longo período de estabilidade na política nacional desde o 25 de Abril, garantido por uma maioria relativa e duas absolutas. Seguiu-se até às eleições e à vitória socialista um ano irrequieto e estertoroso, concluído simbolicamente no episódio do bolo-rei, um sinal claro de perturbação, cansaço político e nervos à flor da pele de um homem que se ilustrara pela sua aparente frieza e racionalidade.

A exposição pública é profundamente perturbadora. Dois, 3 ou mais anos de exercício do poder nas democracias da era do digital e da rede global, são mil ou mais dias a receber críticas, inquirições, acusações, vitupérios, insultos, incompreensão. É dose. E antes que me acusem de branquear quem quer que seja ou de me esquecer das vantagens do exercício do poder, informo que tenho consciência clara da atracção que ele exerce, já para não falar das vantagens da condição de ex-governante, ex-deputado, ex-líder de juventudes partidárias. Mas o final de qualquer mandato sujeita os mais frágeis psicologicamente a um stress violento. As repercussões são evidentes.

O “Pires de Lima show” na Assembleia prova-o à abundância. É o puro fruto do desgaste da governação. E contudo Pires de Lima só é ministro há pouco mais de um ano. Donde a lei da pressão inversa do peso do poder: quando em condições de final de mandato e face ao crescimento exponencial da contestação, o mando provoca alterações de comportamento inversamente proporcionais ao tempo do respectivo exercício. Recém-chegados à governação os nóveis ministros tornam-se prosélitos empenhados, excedendo-se em zelo e defesa do executivo que integram, rapidamente se esgotando na sua vontade e disponibilidade por muito depressa se acharam mergulhados na panela de pressão de uma opinião pública incapaz de complacência ou boa vontade para com um governo de que não gosta. Ou seja, sem terem direito a um período de graça, depressa se sentem em desgraça… e soçobram.

Caricatura à parte, os sinais de desgaste da actual governação acumulam-se. Não é caso inédito, como vimos, e levanta uma perplexidade essencial sobre o sistema de governo: como impedir que um quarto de cada mandato se perca para o stress acumulado ou as preocupações pessoais com o respectivo futuro, por parte de cada um dos governantes?

E atenção ao peso do staff no processo de degradação, pois se o ministro ou o secretário de estado ainda vão poder ostentar no respectivo cartão de visita a qualidade de ex-governante, já os chefes de gabinete, adjuntos e assessores têm um problema maior, pois o país regurgita de ex-membros de gabinetes e a obtenção de um emprego ou “posição” não é fácil. Mais vale começar desde já a tratar disso, o que explica o depauperar dos gabinetes e a consequente degradação da produtividade ministerial.

Um quarto ou mais de cada mandato perde-se para o estertor da governação. Esse simples facto põe em causa a qualidade da democracia ao diminuir a qualidade do exercício do poder, o número de competências disponíveis, o exercício consciente da gestão das políticas públicas. A governação torna-se ineficiente ou menos eficiente.

Que fazer? A reforma do sistema político, claro, neste caso a do sistema de governo. Como, é o que importa discutir.

 

Professor da Universidade Católica – Instituto de Estudos Políticos