As crises tendem a acelerar o movimento da história. Desenvolvimentos que, em situação normal, levariam algumas décadas a ocorrer, podem agora suceder-se dentro de horas, semanas ou meses. A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, ajudou a acelerar a transferência de poder entre o Império Britânico e os EUA, e a história está repleta de outros exemplos. Esta crise não deverá ser diferente.

Nas últimas semanas, temos sido testemunhas de um sem número de previsões do que será a vida no mundo pós-Covid-19. Desde o fim da globalização à ascensão do grande Estado Orwelliano controlador – a imaginação dos futurólogos não tem limites. Alguns professam a reindustrialização do Ocidente, outros afirmam que a China emergirá como o novo líder mundial. Mas a vida é composta por tantos eventos imprevisíveis – o incógnito desconhecido – que ninguém sabe quem está certo. Caberá à história o juízo final.

Lembro-me dos meus tempos de universidade, quando um professor de História de renome mundial publicou um livro que defendia a tese de que o império soviético nunca entraria em colapso. Aquele livro era o resultado do trabalho da sua vida. Uma semana após a publicação do livro, o Muro de Berlim caiu. Caíam também por terra as previsões do infeliz professor. Quem, em novembro passado, poderia ter imaginado que mais de metade do mundo estaria parado até março?

A história é feita pelos homens e pelas suas inúmeras ações e escolhas. Não está pré-determinada ou inscrita numa pedra em algum lugar. Governos e pessoas fazem escolhas, tomam decisões e são essas decisões que moldam o nosso mundo, daí a impossibilidade de prever com exatidão o que o futuro trará.

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Tomemos como exemplo a economia política mundial. Será que iremos continuar a trilhar o caminho da globalização e de uma maior integração das economias nacionais ou será que esta pandemia vai ter como consequência uma reação automática contra a intercomunicação global e até mesmo provocar novos anseios independentistas e a arrastar, com ela, um ressurgimento dos nacionalismos? O mundo pré-Covid já estava a dar sinais de se encaminhar nesta direção. A frase “America First” (a América Primeiro) foi o slogan da campanha de Trump em 2016. Após a sua eleição, os EUA considerados há décadas como o líder mundial por excelência e como o arquiteto dos sistemas baseados em regras, pós-Segunda Guerra Mundial, fecharam-se em si mesmo. Dos múltiplos conflitos comerciais com a China e a Europa à renegociação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, cujas várias alterações têm vindo a transformar num acordo comercial menos liberal, a posição de Trump sobre a globalização foi muito clara. “Vamos construir um muro”, repetiu vezes sem conta, até que acabou por fazê-lo. Os perigos da imigração foram enfatizados e a fronteira dos EUA ficou mais impenetrável.

Ironicamente, parece que agora poderão ser os mexicanos a estar felizes com o muro, dado que a Covid-19 é muito mais prevalente nos EUA do que no México…

Também, não podemos esquecer o divórcio que tem vindo a arrastar-se entre o Reino Unido e a UE, ou a pouca solidariedade demonstrada pelos países do Norte da Europa em relação aos seus parceiros do Sul após a crise financeira e económica de 2008. Padrão esse que parece estar ainda bem vivo nos dias de hoje.

Os nossos profetas da fatalidade clamam que esta nova pandemia acelerará ainda mais o fim da globalização. Gary Shilling escreve, num artigo na Bloomberg: “Os efeitos depressivos do Coronavírus na economia global e as ruturas nas cadeias de abastecimento constituem, sem dúvida, a machadada final nos defensores da globalização”. Shilling aborda aqui um ponto importante e que se tornou flagrantemente visível com esta crise – a interrupção das cadeias de abastecimento, especialmente daquelas que garantem equipamentos médicos fundamentais.

Significa isto que os países voltarão ao abastecimento de produção interna (home-shoring)? Em termos gerais, duvido muito. Será necessário rever a estratégia industrial e geopolítica, e já há quem solicite essa revisão. Mas um grande aumento da produção doméstica nacional parece muito improvável. Os países exigirão maiores reservas estratégicas de equipamentos médicos – esta foi uma lição aprendida. Precisarão também de criar cadeias de abastecimento mais resilientes e diversificadas de outros bens não estratégicos. Quando digo resiliente, não pretendo dizer que tenham de ser produzidos internamente, mas a, até agora, confiabilidade desmedida na China poderá ter de ser repensada. Poderá vir a dar-se uma deslocalização de fábricas e cadeias de abastecimento para países como a Índia, o Bangladesh ou o Vietname. Quem sabe, talvez estes países acabem por vir a tornar-se os grandes “vencedores” económicos desta pandemia.

O facto de os governos não terem conseguido fornecer equipamentos civis críticos para ajudar a salvar vidas irá deixar a sua marca. A solução é criar reservas de equipamento médico e fortalecer os sistemas nacionais de saúde. Não é parar o movimento de mercadorias, capital e pessoas. Se recordarmos, o aumento do preço do petróleo nos anos 70 não afetou a globalização. Em vez disso, obrigou os países a reverem as suas políticas industriais e geoestratégicas. A longo prazo, fontes alternativas de energia foram desenvolvidas. Quem podia, criou reservas estratégicas de petróleo. Mas a situação não acabou com as importações de outros países.

A inovação tecnológica tornou-nos mais integrados. O simples facto de, em todo o mundo, haver pessoas que ainda podem ser entrevistadas a partir do conforto das suas próprias casas, mesmo durante este período de confinamento, é prova disso. É, todavia, verdade que alguns consideram os avanços digitais como hipercompetitivos, funcionando como jogos económicos de soma zero, sistema que, normalmente, não se aplica a uma economia produtora de bens. Estas tecnologias preservam dados valiosos e podem ser usadas com objetivos militares e de segurança nacional. Não é, pois, muito sensato deixar esses dados nas mãos de uma potência estrangeira. Não é igualmente sensato, ter a nossa rede elétrica em mãos estrangeiras, também isto deverá ser reavaliado. A Comissão Europeia tem vindo a alertar para a necessidade de pararmos de acolher mais investimentos chineses na zona euro. Talvez este seja um passo inteligente, principalmente se tivermos em linha de conta que há pouca ou nenhuma abertura da China ao investimento ocidental.

Em suma e depois deste discurso, seria compreensível que o leitor acreditasse que defendo uma menor globalização. Muito pelo contrário, encaro a Covid-19, como uma lição que é necessária uma maior conectividade. Essa pandemia atingiu-nos a todos, jovens e idosos, ricos e pobres. Ninguém lhe é imune. Nas palavras do Papa Francisco, somos “todos igualmente frágeis”. O mesmo acontece com os países. Estamos todos no mesmo barco; partilhamos o mesmo futuro. Fechar as fronteiras não constitui obstáculo a uma pandemia. A última vez na história em que o mundo não sofreu qualquer pandemia foi na idade da pedra e eu não recomendaria um retorno a esse passado.

Para lidar com sucesso e eficácia com esta pandemia, precisamos de ter maior conectividade e não menor. Precisamos de poder partilhar informações de maneira mais global e fiável. Só então poderemos vencer esta ameaça invisível. Temos agora consciência de que algo que aconteça a qualquer pessoa, em qualquer país, pode vir a prostrar o mundo todo.

Precisamos de cooperar na produção e na distribuição de equipamento médico vital e de garantir que esse equipamento esteja disponível e possa ser despachado para onde for mais necessário. O pânico e a histeria iniciais levaram alguns menos iluminados a uma procura desmedida de alguns bens, o que veio a provocar uma escassez nacional – de papel higiénico, nomeadamente – imaginem as consequências de tal entre os Estados. Um sistema de aprovisionamento mais centralizado e unificado teria beneficiado quer o governo federal dos EUA, quer a UE. Mas todas as crises servem o seu propósito: o de sermos capazes de tirar lições dos erros cometidos e de fazer melhor na próxima vez.

Somos tão fortes quanto o nosso elo mais fraco. Não faz sentido controlar ou até mesmo resolver a evolução da pandemia apenas no nosso país se o mundo que nos rodeia se estiver a desmoronar. África será a próxima calamidade. O mundo precisa de começar a pensar seriamente em como ajudar os africanos a lidar com isto, se quiser realmente pôr um ponto final a este pesadelo. Não podemos, e não deveríamos pensar que a concentrarmo-nos no nosso umbigo poderemos resolver alguma coisa.

Por fim, é necessário conceber um plano que previna um desastre económico. Imediatamente a seguir a 2008, os líderes mundiais uniram-se para elaborar esse plano, e graças a isso fomos poupados a consequências bem mais gravosas. Hoje em dia, isto não está a acontecer. Os Estados Unidos demitiram-se do seu papel tradicional de liderança. A China, por um lado, parece hesitante e, por outro, não me parece que muitos países viessem a aceitar de bom grado a sua legitimidade como novo líder mundial. Se os países não se unirem, iremos viver com as consequências desta pandemia por várias gerações.

A Covid-19 não condenou inevitavelmente a globalização. Veio, sim, ensinar-nos que a cooperação é fundamental para que todos possamos sobreviver. A regulamentação do comércio internacional poderá precisar de ser revista e fortalecida. Da mesma forma, o papel das Nações Unidas e da OMS deverá ser reavaliado e a sua eficácia deverá ser aumentada.

A divisão entre estados não pode e não deve tornar-se o novo padrão. Esta epidemia passará, a maioria de nós sobreviverá, mas as nossas opções de hoje moldarão não só o nosso futuro, mas também o das gerações vindouras.

Uma epidemia pode acelerar algumas coisas que já estavam em marcha, tornando-as irreversíveis. Poderá, igualmente, mudar o curso da história. Ninguém sabe, de facto, o que trará o amanhã. Há que ter cuidado com os futurologistas. O nosso amanhã será moldado pelas decisões que as nossas sociedades tomarem hoje. Nada é predeterminado. Temos o poder de decidir o nosso futuro a partir das decisões que tomarmos hoje.

As crises têm normalmente o poder de gerar transformações positivas nas sociedades, tornando-as mais resistentes. Tudo o que podemos dizer com segurança é que amanhã será diferente de hoje. Vamos esperar pelo melhor.

(versão em inglês)