Não estou a falar da antiga Polícia Internacional e de Defesa do Estado e da sua Direção Geral de Segurança. Refiro-me ao novíssimo Procedimento Incontestável de Divulgação Estatística  (PIDE), da Direção-Geral da Saúde (DGS), que o Governo acaba de pôr em prática. Não é a mesma coisa, apesar de o significado ser semelhante: circunscrição da liberdade, limitação da verdade e construção de uma realidade paralela.

Este PIDE é censura? Ou é uma mera aplicação dos poderes excepcionais conferidos ao Governo através do Estado de emergência?

O Ministério da Saúde pediu delicadamente aos seus representantes nos municípios, os delegados de saúde pública, para, no cumprimento do dever de informação pública, fazer referência apenas aos dados disponibilizados pela DGS. Para o efeito, o boletim informativo para a COVID-19 passou a “proscrito”.

Logo se levantaram, e bem, vozes de descontentamento contra esta decisão. Principalmente ao nível do poder local. Por que razão exigem os Presidentes de Câmara Municipais ter acesso à informação? Porque são a autoridade máxima da Proteção Civil nos seus concelhos e como responsáveis políticos pela protecção das suas populações necessitam de informação fidedigna para cumprir eficazmente as suas obrigações.

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Porém, ponham-se no lugar do Governo. É muito desagradável estar a tentar criar uma narrativa acerca da crise e ser continuamente ultrapassado pela realidade. A sério… ponham-se no lugar das autoridades centrais do Estado. Imaginam o que é para o Primeiro-ministro, após ter dito que não falta nada no SNS (e que nada faltaria), ser criticado todos os dias? Ele que certamente só não terá pilotado o avião que trouxe equipamento da China porque não o terão deixado. Até esteve no aeroporto à espera para se fazer fotografar à chegada e em pose de ajudar à descarga. E para a Ministra da Saúde, para o Secretário de Estado da Saúde e para a Directora Geral da Saúde? Já imaginaram o esforço árduo que foi despendido na recolha e transmissão diária da informação com inúmeros asteriscos e ver os cientistas e médicos escrever cartas abertas? Já pensaram na vergonha que sentiram ao considerar um cordão sanitário e o Presidente da Câmara demonstrar que os números estavam errados? E o ridículo que passaram quando outro Presidente de Câmara anunciou que o seu município tinha mais 167 casos confirmados do que os divulgados pela DGS?

Assim, se perguntarem ao Primeiro-ministro, à Ministra da Saúde, ao Secretário de Estado da Saúde e à Directora Geral da Saúde, nenhum deles confirmará que o PIDE é censura. Dirão que é, pelo contrário, “protecção”. Que não se trata duma descarada sonegação ou de adulteração da verdade, mas somente da implementação dum instrumento mais adequado à gestão da informação disponibilizada aos portugueses. O que as autoridades centrais desejam é “proteger-nos” (da verdade), sugerindo que tal é para o nosso bem e que, portanto, não deve ser questionado. Ainda que as consequências sejam sérias. E são!

O propósito do PIDE é garantir o segredo estatístico. Por que razão estamos preocupados com uma simples “reserva” da divulgação do número de mortos? Porque qualquer falta de informação, ou a transmissão de informação incompleta, inviabiliza o real conhecimento das circunstâncias, do nível de evolução do contágio e da sua disseminação no âmbito local, regional e nacional. O governo prefere comprometer a gestão dos recursos e uma resposta local apropriada a permitir-nos conhecer a realidade dos factos. Lamentavelmente, isto não é novo. A falta de transparência tem caracterizado a gestão do Governo e da DGS desde o início da pandemia.

Ninguém acredita que o Governo não seja capaz de indicar elementos – infectados confirmados; infectados confirmados com mais de 65 anos; doentes internados; doentes internados com mais de 65 anos; doentes internados em UCI; doentes internados em UCI com mais de 65 anos; mortes registadas; mortes registadas com mais de 65 anos – sem preservar a identidade pessoal. Se os dados são tratados estatisticamente, então são anonimizados porque o governo cumpre com o RGPD.

Nesse caso, porquê o segredo?

Em bom rigor, a interpretação que o Governo faz do dever de segredo estatístico é mais uma forma de conveniência. Depende do momento e do interesse (do Governo). A verdade deixou de ser dever e passou a ser segredo. Foi assim durante os incêndios fatídicos de 2017. É assim, em 2020, na crise do COVID-19.

E se voltarem a dizer que não há comparação entre a actuação do Governo em ambas as crises, atentem que, para além dos padrões de comportamento que as autoridades centrais portuguesas evidenciam, o funcionamento, a credibilidade e a aptidão de resposta do SINAVE é praticamente idêntica à do SIRESP em 2017. Mas, as semelhanças não se ficam por aqui. Em 2017, os comandantes dos bombeiros operacionais foram proibidos de dar informações sobre os fogos.

Vivemos em democracia. Supostamente, os governos não mentem ou, pelo menos, têm a obrigação de ser transparentes. Contudo, quando ouvem dizer que o Primeiro-ministro vive para as entrevistas, não tenham dúvidas: António Costa não quer que saibamos a verdade. Apenas está interessado na “verdade” que lhe é conveniente.

Este PIDE socialista é censura. E também é um abuso de poder face ao disposto no Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020.

Post-Scriptum – é curioso que o Governo, quando os números não são favoráveis, é que se lembrou do segredo estatístico. Mesmo assim, extravasa os limites nele considerados.