Durante algum tempo, pareceu que não ia acontecer por cá. Por todo Ocidente, as crises da globalização fizeram crescer as esquerdas radicais e as direitas nacionalistas. Em poucos anos, surgiram partidos novos, e velhos partidos mudaram de orientação. Em Portugal, no entanto, o parlamento continuou a abrir o mesmo leque partidário da Assembleia Constituinte de 1975, como um imperturbável museu de história política. Em 2019, porém, o sistema abriu brechas. A 10 de Março, veio abaixo.

A dúvida sobre se a história ia passar por aqui teve a ver com o PS.  A certa altura, os socialistas deram a impressão de ter encontrado a fórmula, numa sociedade envelhecida e debilitada, para blindar o sistema contra renovações:  capturar o Estado e clientelizar os seus dependentes, usando o apoio do BCE e os fundos europeus. A comunicação social contribuiu, cancelando quem não cantava no coro. Mas nem assim o sistema aguentou. Não podia. Os abalos eram demasiado grandes. Com muitas ou poucas queixas, os portugueses viviam por volta de 1995 num país que era deles, mais ou menos funcional, e que esperavam se tornasse melhor, numa Europa aparentemente destinada à paz e à estabilidade. Tudo isso acabou, com o mais longo período de divergência económica em relação à Europa ocidental desde a II Guerra Mundial, as migrações descontroladas, o wokismo oficializado, e o retorno à Europa da inflação e dos conflitos entre grandes potências. Neste contexto de declínio e de incerteza, os abusos e a incapacidade da oligarquia tornaram-se insuportáveis. Foi isto, e não qualquer excerto de prosa judicial, que derrubou António Costa. E foi isto, e não qualquer birra passageira do eleitorado, que avassalou o sistema partidário.

É possível, porém, que o sistema tente resistir, com um novo protagonista. Após o 10 de Março, Luís Montenegro tinha, em teoria, dois caminhos. Um deles era tentar organizar a maior maioria de direita de sempre, de modo a viabilizar um governo de ruptura com as políticas dos últimos anos. Tratava-se de reunir a direita para fazer reformas, como António Costa reuniu a esquerda em 2015 para resistir às reformas. O outro caminho era propor-se como o novo porteiro do sistema, e esperar que uma governação concentrada na satisfação dos dependentes do Estado e na distribuição do PRR lhe traga os votos de que até agora beneficiaram os socialistas. As “linhas vermelhas” já tinham revelado inclinação pelo segundo caminho. O acordo com o PS para a partilha da presidência da Assembleia da República confirmou a opção.

A Luís Montenegro, no entanto, este caminho deveria merecer alguma reflexão. O PSD até pode, caso se mantenha no governo, saciar a obsessão de “reconciliar-se” com os pensionistas. Mas entretanto, já Pedro Nuno Santos provou que “só o PS resolve”, sempre no lugar do patrão, e André Ventura ficou livre de responsabilidades, como oposição ao bloco PSD-PS. Quando a nossa estratégia também serve aos nossos adversários, devemos duvidar. Resta saber se serve ao país. Talvez Luís Montenegro tenha pretensões reformistas. Mas o PS não existe para facilitar liberalizações (chamemos as reformas pelo seu verdadeiro nome). Não é provável, portanto, que um governo dependente da benevolência socialista fique na história do reformismo. Mas sem reformas, só por grande acaso é que a economia voltará a convergir, a saúde e a educação estarão garantidas, e a sociedade recuperará confiança. O que significa que a turbulência e a transformação do sistema partidário não está para acabar. De facto, ainda só agora começou.

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