Sentado a ver a segunda parte do Polónia-Suíça, a pensar que o progressivo recuo dos polacos era menos estratégico que desesperado, tinha decidido escrever sobre a ultimamente tão vilipendiada arte do contra-ataque. Inspirado pelo golo da Polónia, planeei vingar anos da defesa totalitária da posse de bola como fim último do jogo. Os culpados pela propagação desta filosofia foram aqueles colectivistas catalães liderados por um sujeito de falsa amabilidade e de uma mal disfarçada ferocidade eclesiástica.

Xavi Hernandéz, extraordinário jogador e inquisidor-mor ao serviço do culto da posse de bola, não tinha vergonha de dizer, quando a sua equipa perdia, que era o futebol que tinha perdido, lançando um anátema sobre qualquer equipa que tentasse vencer o Barcelona com argumentos que, para os fiéis de Camp Nou, eram autênticos sacrilégios, batota moral. Eu, que amo o futebol, confesso que me deliciei com algumas das lições de geometria que aquela equipa do Barcelona deu ao longo dos anos. Lembro-me em particular de uma meia-hora em Londres, contra o Arsenal, que merecia ser emoldurada e exposta no Louvre e da final do Mundial de Clubes contra o Santos, de Neymar. O que a certa altura se tornou inaceitável foi a arrogância catalã, o atrevimento de reduzir o futebol ao tiki-taka, quando o tiki-taka era, em certos momentos, o contrário de tudo o que é belo e emocionante no futebol.

Portanto, sempre que vejo um golo que resulta de uma jogada de contra-ataque, com quatro ou cinco passes que levam a bola de uma baliza à outra, festejo a existência de uma beleza alternativa, de uma resposta profana ao monoteísmo de Guardiola e seus acólitos. Como tal, tinha resolvido escrever sobre o golo da Polónia, o galope de Grosicki, um ressalto feliz, o passe para Milik, a simulação deste, o controlo de Błaszczykowski e o remate que levou a bola a passar por baixo das pernas de Sommer. Só que, na segunda parte, a Suíça foi apertando lentamente o cerco, a criar perigo em quase todas as jogadas, com oportunidades claras de golo, incluindo um remate à barra. Aquele golo brilhante começava a ficar baço e escrever sobre ele, mais do que um prazer, ameaçava tornar-se uma penosa obrigação. Felizmente aconteceu aquilo que todos vimos. Quanto tempo é que durou o salto de Shaquiri? Quanto tempo levou a bola a sair do pé do jogador suíço e a chegar às redes polacas? Não vale a pena confirmar nas gravações automáticas. Naqueles segundos em que tudo aconteceu, o tempo ficou suspenso. Eu fiquei literalmente de boca aberta, a pensar que a bola não podia ter entrado. Não podia ter entrado porque execuções tão perfeitas e tão raras costumam levar a bola a rasar o poste e a tocar “nas malhas laterais”. É isso que acontece num dia normal.

O que aconteceu foi um milagre porque a bola entrou mesmo. Na sequência de um pontapé de bicicleta à entrada da área. Nos oitavos de final de uma grande competição. E, para que tudo fosse perfeito, num sábado de sol.

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Um golo perfeito é como a canção pop perfeita. Há jogadores que o perseguem e que quase são destruídos por essa demanda. Cristiano Ronaldo, que já tem tantos golos fenomenais no seu currículo, como o que agora marcou à Hungria, ainda quer esse golo inesquecível – Maradona no Estádio Azteca, Ronaldo Nazário de Lima em Santiago de Compostela, Van Basten na final do Euro 88 – o golo que esteve perto de marcar num jogo contra o Azerbaijão ou, noutra ocasião, contra Espanha, num particular no Estádio da Luz. Ambos foram anulados. Em várias ocasiões Ronaldo demonstrou que ainda sonha com aquele golo de pontapé de bicicleta que tarda em vir, aquele golo à Pelé no final de Fuga para a Vitória, o Santo Graal do futebol. Shaquiri, até hoje praticamente anónimo no Europeu, encontrou o seu esta tarde. E como tudo o que é belo no futebol, assim que a encontrou, a relíquia passou a ser de todos nós, os que vibraram no estádio e os que ficaram de boca aberta a olhar para a televisão e a pensar que nem cem golos de contra-ataque valem o mesmo que aquela maravilha.

Já agora

Tanto talento em campo e o jogo foi tão táctico e absurdo como uma partida de scrabble entre analfabetos. Fernando Santos finalmente apostou no meio-campo do Sporting mas foi notória a ausência de Bruno de Carvalho no banco. Como era de prever, o único golo do jogo só podia resultar da união improvável entre Renato Sanches, Ronaldo e Quaresma.