Porque é que temos ouvido falar tanto do nuclear neste último ano? É mais um resultado da invasão russa da Ucrânia. E por duas razões. A primeira é que a Rússia não para de falar no assunto numa tentativa de nos assustar. A segunda é que o nuclear nos assusta, por razões sólidas, mas também excessiva e irracionalmente.

Putin ama a bomba

Independentemente das contingências da ofensiva ucraniana, que é a operação militar mais custosa na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, esta guerra tem corrido estrategicamente muito mal à Rússia: do alargamento da NATO até à ocidentalização e militarização da Ucrânia. Como reagiu o Kremlin a esta demonstração flagrante de fraqueza e incompetência? Tem sido rara a semana em que líderes e propagandistas russos não nos ameaçam com as muitas ogivas nucleares do seu país.

As últimas novidades foram as armas nucleares táticas russas a caminho da Bielorrússia, e, nos últimos dias, as alegações russas de uma sabotagem ucraniana da maior central nuclear da Europa, na região de Zaporizhia. Elas não merecem grande crédito. E não é só pelo facto de as declarações russas terem sido, repetidamente, desmentidas pelos factos desta guerra. Que interesse teria a Ucrânia em inutilizar uma central nuclear que lhe custou dezenas de milhões de dólares e que representa potencialmente 20% da sua eletricidade? Porque iria criar um novo obstáculo nuclear à sua ofensiva no Sul? Por isso surgiu o receio de que poderia tratar da preparação pela máquina de desinformação do Kremlin, de uma operação de sabotagem russa que seria atribuída à Ucrânia, como parece ter sido o caso da destruição da barragem de Nova Kakhovka.

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Estou certo de que a Rússia irá sabotar a maior central nuclear da Europa? Não, isso seria extremo e extremamente arriscado até para as suas tropas. Não me arrisco, no entanto, a dizer que é impossível. Porquê? Putin saiu enfraquecido deste golpe de Prigozhin. A Rússia tem cometido massacres bem documentados contra civis. Tem procurado destruir sistematicamente as infraestruturas ucranianas, em especial as ligadas ao setor da energia. Tem tratado os soldados russos como carne para canhão. A ponto de terem marchado pela zona de Chernobyl, nos primeiros meses da guerra, a caminho de Kiev, por um dos terrenos mais contaminados do planeta.

Paranoia nuclear?

É possível que estejamos a exagerar o risco nuclear do lado da Rússia. É possível que tudo não passe de pura desinformação russa. O que não faz sentido é o Kremlin e os seus amigos queixarem-se precisamente daquilo que têm estado a promover ativamente: um grande foco no nuclear.

A Rússia sabe como é forte, no Mundo e especialmente no Ocidente, uma rejeição visceral do nuclear. Este tabu do nuclear estende-se, cada vez mais, até ao uso pacífico do mesmo para a produção de energia, por exemplo na Alemanha, onde, por sinal, é uma das principais alternativas ao gás natural russo. Esta aversão tem que ver com a perceção do nuclear como estando associado à radiação e aos seus efeitos. Isso faz com que o nuclear seja visto como algo “sujo”, contranatura. Na verdade, o principal efeito destrutivo do armamento nuclear é a explosão, a onda de calor, e, depois, o risco de ingestão ou contacto com material contaminado por urânio, não tanto por este ser radiativo, mas sobretudo por ser um metal pesado, venenoso quando ingerido, como outros metais pesados não-radioativos como o chumbo.  Com isto não estou a desvalorizar o risco de todo o armamento nuclear do Mundo, que pode matar centenas de milhões em poucas horas e, possivelmente, destruir a vida na Terra. Mas recordo que a Rússia nunca ameaçou com um Holocausto nuclear. Putin sabe que ninguém sobreviveria a isso. E em rigor, hoje há armas nucleares táticas várias vezes menos poderosas que as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Também não é racional fazer equivaler uma bomba nuclear e uma central nuclear. Estas últimas são construídas, sobretudo as mais recentes, precisamente para não explodir e para evitar ao máximo acidentes. Não estou a defender a complacência face ao impacto de um acidente nuclear como o de Chernobyl ou de Fukushima – que dizem os especialistas seria provavelmente o cenário pior que poderíamos esperar duma sabotagem da central de Zaporizhia. Mas recordo que, objetivamente, morreram mais de 19.000 pessoas como resultado do maremoto “natural” que despoletou o acidente nuclear japonês, face a um morto confirmado como resultado deste último e alguns dezenas de milhares de desalojados forçados. Ou seja, não devemos ser complacentes com os reais riscos do nuclear, mas também não ganhamos nada em os exagerar.

Não à chantagem nuclear

Nada tenho contra as normas internacionais ou até algum tabu global que impeça ou dificulte o emprego de armas nucleares. Mas devemos recordar que foi possível resistir à chantagem nuclear soviética durante as décadas da Primeira Guerra Fria e isso não levou a uma Terceira Guerra Mundial nuclear. Estou, por isso, contra um desarmamento unilateral ou um pacifismo acéfalo que só dará força às imposições de autocratas apaixonadas pela bomba atómica. Estou contra deixarmo-nos cair na chantagem nuclear da Rússia de Putin, e com isso desistirmos da defesa dos nossos interesses e dos nossos valores. Os nossos interesses e valores até podem apontar a certo momento para uma negociação e um cessar-fogo, sobretudo se a Ucrânia decidir que é esse o melhor caminho. Mas a paz não deve ser o resultado da chantagem nuclear russa. Isso seria, aliás, mais um incentivo ao acelerar da atual corrida global ao armamento nuclear.