1 Não é mania, tique, má vontade. Nem sequer o português fatalismo (que pratico). É uma mera constatação de disfuncionalidade política. Numa interpretação benévola troco por disconformidade mas é entre as fronteiras de uma e outra que anda o socialismo doméstico, não recomendando que o uso do piloto automático pudesse de facto ser accionado. Basta porem uma mera observação das coisas: haverá mais disfuncional do que aquilo que o poder político “acha” que os portugueses vivem e aquilo que os portugueses sabem que vivem? O declive entre o modo como estas duas realidades são olhadas – a “deles”, poderosa e poderosamente iludida; a nossa, pagantes úteis e mal servidos – é cada vez mas disconforme, cruzando-se com o disfuncional.

Não se percebendo aliás em tão invulgar estado da arte, quem estranhar mais: se a “forma mentis” das autoridades supostamente encarregues do nosso destino social e politico, se o alarmante sono do país.

Longa sesta, ou noite longa, um dia o acordar da letargia não trará boas noticias. E não, não é a guerra da Ucrânia, nem a inflação, nem foi a pandemia. A brutalidade russa é posterior á valsa da desconformidade com a disfuncionalidade; a inflação já operava antes da guerra e a pandemia não deu cabo do país mas — isso sim — do Serviço Nacional de Saúde. Estando este já fragilizado em 2020 porque as cativações impediram que se tratasse dele para que ele pudesse tratar dos portugueses, o SNS embateu violentamente contra o vírus. Só não se estilhaçou devido à responsabilidade cívica e à ilimitada generosidade do pessoal clinico e não às acções&decisões do poder político. E um dia vai ser preciso acabar de uma vez por todas com esse fraudulento “faz de conta” que nos conta que os milhares de mortes atribuídos à Covid foram motivadas pela Covid. Uma falsidade com a qual parecem disfuncionalmente conviver bem as altas instâncias do país. Estão enganadas.

2 Eu achara que já vira tudo após ter sido possível assassinar um cidadão ucraniano, às mãos de funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, fardados pelo Estado português. Agredindo até á morte um não culpado de nada, no aeroporto da capital de um Estado de direito. A vergonha do poder nunca foi directamente proporcional ao crime e inconsequentemente a porta de saída foi fechar o SEF, numa óbvia disconformidade governamental entre a decisão tomada e o dano que provocou. Começa a ser politicamente perigoso olhar assim para coisas tão graves. Ainda hoje por exemplo, não se tem a certeza de que a família ucraniana que por terríveis razões ficou sem o seu pater-família-e-ganha-pão tenha sido já – ao menos – decentemente indemnizada. (Nem tão pouco o agregado português de um operário mortalmente atropelado por um carro em altíssima velocidade de um governante que nem dele se apeou após a tragédia. Alguém se encarregou de facto de atender a esta família, ajudando-a no possível? Não sabemos. Mas sabemos que embora ainda sem o veredicto dos tribunais, por enquanto o acusado é apenas o motorista. O ministro safou-se. Ou safaram-no.)

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Tudo isto já foi mais que dito mas pode ter caído no sono do país. Na dúvida, relembra-se. A memória tem de estar em sentido como os soldados. E de serviço a alguns factos como estes que relembro. Haveria mais, o embaraço seria escolhê-los, e a armadilha seria o perigo de os relativizar.

3 Não tenho porem vontade alguma de relativizar o pior de que me lembro no vasto (e variado) menu da disfuncionalidade: por razões puramente ideológicas um magistrado (?) do Ministério Público, propôs-se retirar dois alunos da tutela dos pais, por estes vetarem aos filhos a frequência de uma disciplina numa escola pública. Não preciso sequer de enumerar os considerandos – não são poucos – sobre o critério e a oportunidade da disciplina de Cidadania, nem o universo e as idade das plateias a quem se destina. O que me interessa registar é a natureza da “resposta” de um Estado de direito às razões dos pais propondo como sanção, a “captura” de dois menores à sua família.

Tomem boa nota desta grande estreia no totalitarismo.

4 Que Estado é este, que Ministério Público é este, que políticos são estes, que país é este? E que mudez é esta no consentimento de tudo? São perguntas com importância dado o nível de toxidade das águas da nossa democracia. Chegar-se a esta disfuncionalidade entre uma determinada decisão paternal (mesmo não concordando com ela) e a actuação (?) do Ministério Público, recoloca a questão do perigo. É verdade: não haveria piloto automático capaz de conduzir quem quer que fosse por terrenos tão minados.

5 O Presidente da República tem tentado, sem grande sucesso mas não é fácil lidar com alguém como António Costa, contrariar a disconformidade política praticada pelo primeiro-ministro para com a realidade. E não sendo fácil – ou sendo ainda mais difícil – coabitar politicamente com alguém como Marcelo, há que reconhecer que a teima numa persistentemente idílica visão do Executivo sobre governo e governados começa a exasperar e não só o Chefe de Estado. Nesse quadro tingido de rosa cabe tudo – tudo menos escolhas difíceis e reformas indispensáveis. Cabem anúncios, promessas, garantias, amanhãs, em mais uma brutal dissonância entre o país de Costa e o outro: o que não cresce, não produz, não avança, não compete e nem sequer… nasce. Envelhece.

6 É certo que António Costa é um mestre a driblar a realidade. Usou o piloto automático quanto quis e quis muito, o país lá ia (não) andando, ele não tinha chatices, Centeno cativava enganando dez milhões de portugueses a fingir que não havia a austeridade imposta por Bruxelas. E até os da geringonça engoliram todo o óleo de fígado de bacalhau que o “Premier” lhes serviu, da Nato, às contas certas, passando pelos hinos a UE e aos desvelos face ao euro.

Agora não. Tudo mudou. Já não há piloto automático, as dúvidas instalam-se, as perguntas saltam, a perplexidade ancorou no universo parlamentar e partidário: como é possível usar politicamente de modo tão disfuncional uma maioria absoluta? Delapidando as vantagens que ela obviamente traria a uma governação mais inspirada e reformista mas em contrapartida fabricando abusos e consentindo maus comportamentos democráticos, sentado no sofá da maioria. Ainda mais intrigante e por isso passível de fartas interpretações: como foi possível produzir tão desinteressadamente, tão desajeitadamente, tão disconformemente um governo? Este que aqui está, um dos piores desde Abril de 1976. Coisa estranha. Tão defeituosa politicamente que nem por um dia se podia ligar o piloto automático.

Onde talhou a maionese de António Costa? Cansaço? Querer abalar sabendo que não pode? Consciência tardia de algumas más escolhas? O peso da disconformidade entre os seus (supostos) bons tempos de ontem e a maré baixa de hoje? Desilusão com o que lhe poderia vir a calhar no palco europeu e talvez já não venha? Não sei.

7 Sete anos depois que pode o país guardar desses mesmos sete anos? Pouco, não é? É pena a culpa não poder ser de Passos Coelho. Uma chatice.