Arrepiante, a quantidade de crianças e jovens que, nos quatro cantos do mundo, fornecem imagens para redes de pornografia infantil sem saberem que estão a contribuir para a satisfação sexual de pedófilos e outros tarados perversos, mas também a encher os bolsos de criminosos extorsionistas. Depois de ler os sucessivos artigos de alerta escritos (e bem escritos!) por Carolina Branco, aqui (e aqui) no Observador, é impossível ficar indiferente. O mais dramático é perceber que estes jovens são vítimas de si próprios. Alimentam de forma involuntária os vícios de uma legião de escroques, uma multidão de gente sem escrúpulos que age a partir de diversos pontos do globo, pois a pornografia infantil é um crime transnacional, literalmente sem fronteiras, e os ataques podem vir de qualquer lado.

O vídeo nacional da campanha Say No!- A campaign against online sexual coercion and extortion of children é muito eloquente e devia ser mostrado em casa e nas escolas. Todos os adolescentes e crianças em idades vulneráveis, mas já com capacidade de compreensão, deviam ser obrigados a ver este vídeo para ficarem definitivamente conscientes dos perigos que correm quando se fotografam e partilham imagens da sua intimidade. Esta campanha devia ser viral entre os jovens, mas também devia aparecer automaticamente nos telemóveis e computadores dos pais, professores e educadores, por ser um meio eficaz e imediato de prevenir e identificar sinais de abuso. Mais do que tentarem ter ‘conversinhas impecáveis’ com os filhos ou os alunos, para lhes falar de temas sensíveis e complexos, importa mostrar vídeos como este, que lhes expõe de forma acessível e compreensível os riscos que correm.

Embora saibamos que a pornografia não é prática corrente entre uma esmagadora maioria de jovens e crianças, torna-se urgente e imperativo trabalhar a sua consciência no sentido de os alertar para os riscos que correm quando pensam que estão a iniciar um namoro, uma relação a dois que acreditam ser de amor, mas na realidade já traz sinais de que foram apanhados numa teia de malfeitores que jogam um terrível jogo de sedução que os deixa cada dia mais vulneráveis. Tudo o que se vê no vídeo desta campanha parte de histórias reais, passadas com pessoas verdadeiras, e as autoridades internacionais fazem questão de sublinhar que episódios traumatizantes como estes podem acontecer a qualquer rapaz ou rapariga, mesmo aos que foram educados com bons valores, porque certas idades são particularmente vulneráveis.

Nestas idades, ou em fases de menor confiança em si mesmos, os temas mais sensíveis são sempre o amor e a aceitação própria (e dos outros, pois a pressão dos pares é um clássico eterno), a autoestima e a autoimagem. Todas as crianças e adolescentes ficam indefesos perante pessoas que conquistam a sua confiança e os tratam com estratégica ternura. Pessoas que lhes falam com suposto amor e lhes dizem as coisas que eles estão a precisar de ouvir e lhes dão a ilusão de reforçar a sua autoestima, mas na verdade estão apenas a ganhar terreno para depois os atacar, pois usam esse mesmo capital de confiança para trair, agredir, chantagear e extorquir. Sabemos que o pior pedófilo é sempre o ‘melhor amigo’ das crianças porque só através da confiança as consegue atrair para as poder violentar.

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Tudo acontece nas redes de pedofilia, de tráfico humano e de crime internacionalmente organizado com ramificações em Portugal e é precisamente por vivermos num país onde estes crimes já têm expressão que vale a pena ver o vídeo até ao fim. Para perceber melhor como as coisas acontecem. Não se trata de uma campanha de prevenção que enuncia eventuais ameaças! Trata-se de um filme feito a partir de situações que já aconteceram, e vão continuar a acontecer, se não criarmos uma rede virtuosa capaz de combater e desmantelar estas redes viciosas.

A campanha está dirigida aos jovens, mas sabemos que qualquer adulto pode tirar lições do vídeo. Aliás, a tentação de alguns pais e educadores pode ser descartar a campanha à partida, sem sequer a ver ou se interessar por ela, com o argumento de que conhecem bem os seus filhos e sabem que estão informados e são bem formados. Eu não arriscaria passar ao lado, porque ninguém, absolutamente ninguém é imune aos avanços de predadores e manipuladores. Muito pelo contrário: quanto mais inocentes são, menos ferramentas interiores têm para detetar estratégias diabólicas e, nesse sentido, maiores vítimas se podem tornar.

Nos dias que correm e ao ritmo a que estas e outras ameaças alastram, até os bons pais que se empenharam em dar aos filhos uma educação sólida e estruturante, que apostaram na sua formação moral e intelectual, podem ser surpreendidos por um namorado ou namorada que manipulam os seus filhos, os isolam dos amigos e os influenciam negativamente. Há fases em que mesmo os bons pais deixam de ter o ascendente que tinham nos seus bons filhos porque estes ficam mais suspensos da aceitação dos pares e da aprovação dos amigos. Ou sob efeito de namorados terrivelmente sedutores e dramaticamente manipuladores.

Se há uns tempos atrás a pior ameaça eram as drogas e os excessos do álcool, agora a net revela-se ainda mais diabólica porque sob uma aparência de bem ou sem que as pessoas sintam que estão a ser usadas, guarda para sempre imagens que não se apagam e podem ser usadas e abusadas durante muito tempo, perpetuando a humilhação e a exposição destrutiva de alguém que confiou na relação que estava a viver. Uma adolescente incautamente apaixonada pela pessoa errada ou um jovem refém de um jogo de sedução podem cair na tentação de se fotografarem na intimidade e partilharem as fotografias julgando que o fazem apenas e só com a pessoa a quem estão ligados. Os especialistas na matéria garantem que situações destas são cada vez mais frequentes e acontecem tão facilmente com jovens libertinos, como com adolescentes ‘certinhos’. Isto não pode deixar de servir de alerta.

Não se trata de assustar os pais, como é óbvio, nem de levantar uma suspeita geral sobre todos os jovens que usam net, que ficam emboscados horas a fio no seu quarto e são ativos nas redes sociais, mas é importante ficarmos mais conscientes e mais atentos. Até porque os pais sentem-se naturalmente mais tranquilos quando têm as filhas e os filhos em casa, mesmo sabendo que passam horas agarrados ao computador ou a teclar nas redes sociais. Preferem tê-los perto porque ficam com a ilusão de que os protegem mais e controlam melhor do que quando eles saem com os seus amigos. Nem sempre é assim, infelizmente, porque se passarem uma quantidade absurda de horas online isso pode leva-los a distanciarem-se do ambiente familiar e a criarem identidades ou vidas paralelas.

Demasiadas horas nos chats e na net também podem ser sinónimo de solidão e isolamento, dificuldades de relacionamento com pessoas reais ou não aceitação própria. Sabemos que o isolamento cria sempre distorção na leitura das realidades em volta. A imagem do enamoramento e do amor podem ficar muito alteradas para quem as vive filtradas por youtubers, séries de TV, reality shows ou vídeos pouco edificantes, de qualidade duvidosa. E é nessa estranha perceção do que é gostar e ser gostado, amar e ser amado, que mais facilmente se aceitam regras de jogos perigosos.

O namorado ou a namorada que pede para o outro se despir e se mostrar no ecran, assumindo poses ousadas ou provocantes (para dizer o mínimo), ou aceita fotografar-se a si próprio para logo a seguir partilhar a imagem, fica para automaticamente exposto para sempre. São cada vez mais os casos de ex-namorados que depois partilham essas mesmas fotografias no facebook e nas redes sociais, seja para se vingarem porque foram traídos ou porque o namoro já terminou, seja por pura maldade ou gozo perante os amigos. Acontece que estas imagens não ficam apenas nos círculos destes tipos reles e asquerosos. Através de mecanismos de inteligência artificial as fotografias vão sendo captadas e arquivadas para poderem ser usadas por redes de extorcionistas. Isto, claro, se o dito namorado ou namorada não forem, eles próprios, os maiores vigaristas à partida (vidé o vídeo da campanha, insisto, onde fica muito explícita a forma insidiosa como criminosos adultos criam múltiplas identidades online, fazendo-se passar por jovens e crianças, seduzindo menores, induzindo neles comportamentos e fazendo deles as suas vítimas).

As redes de pedofilia e de pornografia infantil rejubilam com a novidade da pornografia involuntariamente autoproduzida e, porque hoje em dia todas estas realidades se misturam, a Europol lançou em 2017 a iniciativa “Stop Child Abuse – Trace an object” , para que o público em geral ficasse mais alerta para este drama e pudesse identificar sinais de abuso que permitam resgatar as vítimas e dar pistas sobre os abusadores. No site deste serviço europeu de polícia foram publicadas imagens que já salvaram várias crianças e capturaram os criminosos.

Em Novembro passado, as notícias voltaram a ser reforçadas em Portugal pela voz de Pedro Vicente, coordenador da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e a Criminalidade Tecnológica (UNC3T), da Polícia Judiciária, que revelou publicamente que tinham sido visualizados mais de 32 milhões de conteúdos de pornografia infantil. Uma barbaridade colossal com um impacto brutal nos investigadores que visionaram estes conteúdos. Como disse Pedro Vicente, o visionamento deste material abjeto “provocou um desgaste mental muito forte, dada a natureza das imagens”.

Percebo os investigadores e os especialistas quando dizem que todas as ajudas são fundamentais e bem-vindas. Todos nunca seremos demais para passar palavra e para evitar que crianças e jovens passem por situações traumáticas, que deixam marcas para a vida inteira. As crianças e jovens são presas fáceis para os predadores porque não têm noção dos perigos reais e também muito facilmente se deixam ir em conversas ternas ou sedutoras que lhes aumentam a autoestima e que (aparentemente) os valorizam.

Atualmente a UNC3T da PJ já está a investigar vários casos de coação e extorsão sexual de menores e importa sublinhar que só existe coação e extorsão quando há chantagem e manipulação. Quem age de livre vontade e sabe ao que vai, não se sente vítima, mas quem confiou em alguém que parecia confiável e depois se vê vilmente traído e ameaçado com a exposição pública de imagens absolutamente privadas, torna-se realmente vítima. Por mais errada ou desajustada que tenha sido a sua conduta, ela assentou na confiança mútua e não no consentimento do uso de uma imagem que foi partilhada em clima de sedução e (suposto) romance.

Vale a pena ouvir e amplificar os alertas das autoridades nesta matéria, bem como dos especialistas do Instituto de Apoio à Criança, que advertem para o fato de os filhos perceberem muito mais do que os pais acerca da internet, mas saberem infinitamente menos sobre os perigos que ela representa do que os pais. No ano que celebra Sophia, termino com uma das suas mais repetidas frases: “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.