Num livro recente, Arkady Ostrovsky diz que a Rússia voltou à arena internacional não pelo seu poder militar ou económico, mas por ser um competidor na batalha pelas ideias. Esta afirmação não deixa de ser parcialmente intrigante. Afinal, muitos têm apontado que parte do segredo do sucesso do presidente russo é a sua forma a-ideólogica de fazer política, recorrendo à história, tradição e religião russas para unir a população em torno da sua figura paternal, protetora e implacável com inimigos exteriores, imaginários ou não.

Mas, por outro lado, é cada vez mais evidente que Vladimir Putin, que defende a Rússia com unhas e dentes (e armas e o que mais for preciso, em prejuízo de alguns na sua vizinhança), se tem tornado um exemplo para muitos no Ocidente, não só entre elites – Viktor Orbán, na Hungria, não se coíbe de afirmar que Putin é o seu modelo – como para muitos indivíduos por esta Europa fora, que suspiram por um líder que lhes devolva a auto-estima e que ponha a casa (leia-se, o país) em ordem.

Como se explica uma coisa destas? Diria que há três fatores que concorrem para este fenómeno.

Em primeiro lugar o nacionalismo, quando instrumentalizado para fins políticos, é uma ideologia. E é uma ideologia alimentada por sentimentos das populações. No centro está a ideia de que a Rússia é uma nação à qual todos os cidadãos devem estar orgulhosos por pertencer. E Vladimir Putin é a personificação deste ideal de nação. De onde saem duas consequências. Uma interna: Putin, com elevadíssimos níveis de popularidade, está autorizado a governar o país como bem entender. As instituições russas são o próprio presidente. Outra, externa: Putin, no seu papel de protetor e impulsionador exterior da glória russa, está legitimado a agir internacionalmente sempre que achar necessário e da forma que achar adequada, não só para proteger Moscovo, mas para projetar internacionalmente o prestígio russo.

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Assim, este é o segundo argumento, os líderes europeus de movimentos ou partidos anti-democráticos ou que procuram instaurar “democracias iliberais” (Putin prefere chamar à Rússia uma democracia soberana), ou que procuram inscrever nas Constituições ideias ainda mais extremistas – à esquerda e à direita – já perceberam que têm que centrar a sua legitimidade no nacionalismo. Assim, Putin é o exemplo mais perfeito dessa possibilidade, e aquele que todos gostariam de encarnar. Afinal, como foi dito acima, o líder russo tem índices de popularidade (reais) que seriam desejados por qualquer chefe de Estado no mundo.

Finalmente, ainda que as instituições sejam os verdadeiros pilares dos sistemas políticos (daí que os populistas e/ou extremistas que ganham eleições se apressem a modificar constituições e leis, a centralizar a economia e silenciar críticos de várias proveniências – imprensa, academia, oposição política, sociedade civil), há uma sensação generalizada que que a Europa já não tem, há algumas décadas, líderes suficientemente carismáticos que mobilizem as populações e lhes dêm um verdadeiro propósito. Ora, isso cria uma espécie de saudosismo que leva parte das opiniões públicas das sociedades europeias a simpatizarem com o Putinismo, nomeadamente com a figura do presidente russo, que parece ser o último homem a quem se reconhece esse carisma. Assim, mais uma vez, Putin serve um sentimento popular (mais utópico que real) que lhe garante admiração de muitos, mais preocupados com a ordem e a estabilidade – e o prestígio, sempre o prestígio – do que com a democracia e a liberdade.

Fecho com uma reflexão. Putin é um político hábil que soube transformar a situação desesperada em que encontrou a Rússia em 2000 num estado de muito maior estabilidade e muito melhor redistribuição (ajudaram os petrodólares de que nem todos dispomos). Mais, soube galvanizar os sentimentos de pertença e os ressentimentos da população a seu favor, de forma a criar uma narrativa de grandeza nacionalista não só unificadora como legitimadora dos seus métodos internos e externos. Podíamos dizer que o caso da Rússia é tão especifico que tais políticas, que incluem assassinatos, prisões exemplares, o controle das instituições políticas, económicas e dos media, e uma política externa agressiva diplomática e militar, só teriam cabimento ali.

Mas a questão principal é que o Putinismo vai fazendo escola entre nacionalistas mal intencionados nas elites e nas populações europeias. E esta ideia de que a Rússia seria um exemplo a seguir em vários países europeus é uma ameaça à nossa forma de vida. Não vinda de Moscovo, que muito já faz para minar a unidade europeia, mas das formações políticas que o querem imitar, e dos eleitores que as apoiam. É assim que, inadvertidamente, o Putinismo passou a fazer parte da batalha pelas ideias que se trava na Europa. Pela parte que me toca, é incomparavelmente preferível um liberalismo turbulento mas pluralista, com lugar para todas as minorias, uma democracia com defeitos, mas com alternância entre representantes políticos, um Estado em que o nacionalismo se baseia nos acertos e cedências de um debate plural. Um regime que não dependa só de um líder mas de uma profusão de atores que se vigiam uns aos outros. E não há nada disso na Rússia de Putin. Não há nada disso no Putinismo.