Estamos a duas semanas e meia do referendo britânico de 23 de Junho sobre a permanência ou não na União Europeia. O resultado continua bastante imprevisível. Mas, mais do que tentar prever os resultados, talvez valha a pena prestar atenção ao conteúdo do debate. Em muitos aspectos relevantes, é um debate bastante diferente dos que actualmente ocorrem no continente europeu.

Uma primeira característica distintiva é talvez o facto de ambos os lados serem liderados por políticos moderados. A campanha para ficar é obviamente liderada pelo primeiro-ministro David Cameron, a quem aliás pertenceu a iniciativa de convocar o referendo. Mas talvez seja menos conhecido entre nós o líder da campanha para sair.

Não se trata de Nigel Farage, o estridente líder do partido UKIP, nem mesmo de Boris Johnson, o algo imprevisível ex-presidente da Câmara de Londres. Trata-se de Michael Gove, actual ministro da Justiça do Governo conservador de David Cameron. Foi ainda ministro da Educação no governo conservador-liberal anterior — onde promoveu importantes reformas para aumentar a concorrência e a liberdade de escolha das famílias no ensino básico e secundário. E foi presidente da Associação de Estudantes da Universidade de Oxford, onde se licenciou. É um admirador de Edmund Burke.

No artigo com que abriu a campanha para sair (e de que autorizou publicação na edição 59 da revista Nova Cidadania, em breve à venda entre nós), Michael Gove começa por declarar o seu apoio e lealdade para com o primeiro-ministro David Cameron. Explica que o único ponto em que discordam é o da União Europeia. E, mesmo aí, Michael Gove elogia os esforços de Cameron para renegociar o estatuto do Reino Unido no interior da UE.

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Na entrevista televisiva em que participou na semana passada no canal Sky News (no dia a seguir a David Cameron ter sido entrevistado também sobre o referendo), Michael Gove reafirmou a sua lealdade para com o PM e garantiu que não estava na corrida ao lugar.

Um segundo aspecto curioso do debate britânico é que ele decorre entre duas visões que no continente seriam provavelmente designadas de eurocépticas. Nenhum dos lados deseja uma maior integração supranacional da União Europeia. Ambos os lados na verdade desejam maior devolução de poderes aos Parlamentos nacionais. Isso mesmo volta a ficar patente na já referida edição 59 da revista Nova Cidadania, onde Timothy Garton Ash assina um artigo significativamente intitulado “Um argumento conservador para ficar”.

Também ambos os lados são contra o proteccionismo e a favor do comércio livre. Um dos principais argumentos do “Remain” reside aliás nas vantagens do mercado único europeu. Michael Gove, em contrapartida, argumenta que esse mercado é excessivamente regulamentado e pouco aberto ao comércio mundial, atravessando uma prolongada recessão que, em sua opinião, é gerada pelo que designa como “projecto utópico da moeda única”.

Finalmente, também ambos os lados são firmemente a favor da democracia parlamentar ocidental e da NATO. Ambos denunciam a ameaça de Putin e do fundamentalismo islâmico; e ambos sublinham a importância da aliança euro-atlântica, bem como da chamada “relação especial anglo-americana”. Os defensores do “Remain” argumentam que a melhor forma de garantir a aliança euro-atlântica é permanecer na UE — um ponto em que tiveram o apoio decisivo do Presidente Obama.

Este é talvez o ponto mais frágil da argumentação do “Leave“. Timothy Garton Ash explora essa fragilidade no artigo acima referido, acusando os partidários da saída de assumirem uma atitude não conservadora e algo utópica, um “passo no escuro”. Este passo no escuro é particularmente arriscado na actual situação internacional de grande volatilidade, sublinha Garton Ash (que estará no Estoril Political Forum a 29 de Junho próximo).

O mesmo argumento a favor de ficar foi subscrito na revista The Spectator por Ian Buruma e Anne Applebaum. Juntamente com Tim Garton Ash, os três foram “foreign editors” da revista. Faltava o quarto, Sir Noel Malcom, que veio a terreiro na edição de 28 de Maio, o único daqueles quatro a defender a saída. O argumento central de Sir Noel (que em Fevereiro último proferiu a Palestra Tocqueville no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica) reside na soberania dos Parlamentos nacionais, sem a qual, argumenta, não existe auto-governo democrático.

Em suma, estamos perante um debate político sério e de rara elevação. Conseguirão as lideranças dos dois lados manter a moderação até e, sobretudo, depois da votação? Escrevendo na Spectator deste sábado, o distinto historiador Niall Ferguson — que é a favor de ficar e que também esteve no Estoril Political Forum, em 2013) — interroga-se sobre se as divisões provocadas por este referendo serão tão profundas e duradouras como as que foram provocadas pelo acordo de Munique, em 1938, ou pela crise do Suez, em 1956.

Diz então que fez a pergunta a Andrew Roberts (outro distinto historiador, mas a favor de sair, que também escreve na edição 59 de Nova Cidadania). Este respondeu-lhe que não. “Espero que ele tenha razão”, concluiu Ferguson.