1 Na semana em que as escolas públicas começam o novo ano letivo e numa altura em que os pais se interrogam sobre as condições da Direção-Geral de Saúde (DGS) e do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para lidar com o regresso de 1,6 milhões de alunos às aulas presenciais, nada melhor do que analisar o primeiro caso de um aluno infetado numa escola privada — um caso que tenho acompanhado de perto desde o dia 4 de setembro e do qual quero deixar um testemunho como pai para que as famílias se preparem melhor para o que aí vem.

A primeira conclusão é simples de retirar: as estruturas públicas não estão preparadas neste momento para lidar com o mais do que certo aumento de infeções em ambiente escolar. Entre contradições, incongruências e, sobretudo, uma tremenda e confusa ineficácia, a DGS e o SNS provaram que é muito difícil cumprir o princípio definido (e bem) pelo Governo para este ano letivo: promover a segurança sanitária e manter as escolas abertas.

2 Passando aos factos. Uma das escolas que decidiu começar o ano letivo nos primeiros dias de setembro teve um caso positivo três dias após o início das aulas. Felizmente, a criança infetada apenas foi às aulas no primeiro dia — uma feliz decisão dos pais da aluna que, em conjunto com a organização das três turmas do respetivo ano de escolaridade ‘em bolha’ (só contactam entre si e não com os outros anos), facilitou o processo de rastreamento.

Primeiro problema após a divulgação do caso positivo: os pais ligam para a Saúde 24, informam sobre o contacto que o respetivo filho teve com um caso positivo e, após o cumprimento das perguntas de protocolo que se impunham (distância a menos ou mais de 2 metros, uso de máscara, contacto em ambiente fechado, etc.), recebem a informação de que nem sequer há critério para fazer o teste. Isto é, a criança deve regressar à escola imediatamente, com vigilância e medição da febre de manhã e à noite.

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Poucas horas após este contacto, o delegado de saúde decide o contrário e determina a quarentena preventiva (14 dias) de 70 alunos das três turmas do mesmo ano de escolaridade. Mais: todos iriam receber uma prescrição médica para realizar o teste. Uma boa notícia, tendo em conta que as regras da DGS não impõe essa obrigatoriedade, como escrevi aqui na semana passada.

Segundo problema. O delegado de saúde fecha 70 alunos em casa mas os irmãos dos alunos que andam na mesma escola podem ir às aulas. Ora, se é no ambiente familiar que o vírus se propaga de forma mais abrangente, como a diretora-geral Graça Fonseca disse na última sexta-feira, qual o critério para que os irmãos de outros anos de escolaridade possam regressar à escola?

Regressemos aos testes — e aqui nasce o terceiro problema: ao fim de 11 dias, uma parte dos pais ainda não recebeu qualquer prescrição médica do SNS. E as crianças só podem regressar à escola com um teste negativo.

Nesses 11 dias, a Saúde 24 voltou a ser contactada e a resposta sobre a prescrição médica para o teste foi aquela que muitos cidadãos já ouviram em serviços públicos (mesmo aqueles que funcionam em regime de outsourcing como este): “Não é connosco.” É com o vizinho do lado, neste caso com o delegado de saúde que deveria entrar em contacto com as famílias. O que não aconteceu com todos os pais até à hora em que escrevo este texto.

3 Depois da constatação da ineficácia da comunicação dentro do SNS, passemos para uma das minhas características favoritas da administração pública portuguesa: a aleatoriedade. Não uma aleatoriedade seletiva mas sim a melhor das aleatoriedades: a aleatoriedade da incompetência que comprova que o sistema pura e simplesmente não funciona por muito optimista (neste caso, profundamente irritante) que seja o primeiro-ministro António Costa.

Os testes têm de ser realizados a partir do 7.º dia depois do primeiro contacto, de forma a evitar falsos negativos. Logo, os 70 alunos deveriam ter recebido as prescrições médicas a partir do dia 9 de setembro. De facto, alguns pais começaram a recebê-las. Às pinguinhas, os códigos para realizar o teste lá começaram a chegar mas não em número suficiente.

Sendo pais informados, cedo perceberam que os centros de saúde tinham um papel crucial na emissão dessas prescrições médicas para realizar os testes. Assim, alguns ligaram para os respetivos centros de saúde. Ou seja, como o sistema não estava a funcionar, os pais sentiram necessidade de queixar-se. E o sistema reagiu: a cadência das prescrições médicas aumentou. Mas não o suficiente.

Teve de entrar em ação a escola. A enfermeira da nossa comunidade escolar começou a recolher os contactos dos pais que ainda não tinham recebido a prescrição e enviou a respetiva listagem para o delegado de saúde. Uma vez mais, o sistema teve de ser espicaçado para funcionar. Mas, mesmo assim, nem todos os 70 pais receberam a referida prescrição médica. Ou seja, o sistema é tão disforme no seu funcionamento que faz com que a igualdade no tratamento dos utentes seja utopia.

Como é óbvio, os pais que não receberam a prescrição do SNS não ficaram sentados a assistir à desorganização e ineficácia do sistema público. Vários médicos (aqueles malandros que o primeiro-ministro gosta de criticar) entenderam que havia critério para fazer o teste, passaram a respetiva prescrição e os pais acionaram os respetivos seguros de saúde. E entre o 7.º e o 10.º dia após o primeiro contacto, todas as crianças realizaram testes e todos deram negativos. Ou seja, o caso positivo inicial não contaminou ninguém na escola. Uma boa notícia.

4 O que é que este caso nos diz sobre o funcionamento da DGS e do SNS? Se o sistema não consegue funcionar em pleno com um universo de 70 alunos e um caso positivo, é óbvio que terá muitíssimo mais dificuldade para lidar com 1,6 milhões de alunos e um número muito superior de infetados.

Sendo obviamente compreensível que o sistema não seja perfeito e sendo claro para todos que vão sempre existir falhas, não deixa de ser expectável que o sistema funcionasse com o mínimo de competência e celeridade, em vez de falhar ao primeiro caso de infeção num ambiente escolar. A DGS e o SNS tiveram tempo para se prepararem — e já tinham ganho algum know how em maio/junho dos alunos do secundário às aulas presenciais. Não se percebe, por isso, como é possível falharem à primeira.

Por outro lado, o facto de o sistema público ser ineficaz, faz com que seja inevitável que as desigualdades sociais e económicas venham novamente ao de cima — tal como aconteceu com as aulas à distância em termos de acesso à internet e a material tecnológico. Uma parte muito significativa dos pais dos 1,6 milhões de alunos das escolas públicas não terão nem seguro de saúde, nem a possibilidade gastar regularmente 100 euros para realizar o teste. Ou seja, terão de esperar que o SNS lhes envie a respetiva prescrição médica para realizarem gratuitamente o teste. E se nunca chegarem a receber tal receita, como eu e outros pais até agora não recebemos? Não poderão fazer o teste e o seu filho será obrigados a ficar em casa até o sistema de saúde funcionar. O que, pela experiência destes últimos 10 dias, vai acontecer muitas vezes.

Finalmente, há outra questão relevante. O delegado de saúde obrigou 70 alunos a fazerem uma quarentena preventiva de 14 dias. Ora, os pais (e bem) fizeram o teste aos seus filhos após o 7.º dia depois do primeiro contacto com o infetado. De modo a ficarem descansados sobre a saúde dos seus filhos mas também para que pudessem regressar ao trabalho em segurança.

E precisamente por isso (porque os filhos estão em casa mas, pelo menos, um dos pais continua a sair de casa para ir trabalhar), é importante realizar um segundo teste em nome da segurança da comunidade escolar antes de as crianças regressarem às aulas. Uma matéria que aparentemente a DGS não pensou, logo não está prevista uma segunda prescrição médica do SNS.

5 Em todo este processo de 11 dias, há um factor claramente positivo: a forma como a escola comunicou com as famílias e a forma como os pais se entre-ajudaram com informação prática e útil para que os seus filhos fossem testados.

Esta será a chave fundamental para todas as escolas, independentemente de serem privadas ou públicas: quanto mais os pais se envolverem com as respetivas escolas, melhores serão as hipóteses da DGS e o SNS de melhorarem.

É crucial que o regresso às aulas corra bem — e correr bem significa manter as escolas abertas. Não só pelas vantagens das aulas presenciais, como também pela socialização que as crianças e jovens de todas as idades precisam de ter em nome de um crescimento saudável e pelo impacto do confinamento de crianças em idade escolar no trabalho dos pais e respectiva produtividade.

Mas, para tal, precisamos de uma DGS e de um SNS competentes, eficazes e céleres. Será isso também uma utopia?