Numa manhã de inverno de 1883, a bordo de um vapor que o levava de Marselha para o porto de Adem, um comerciante francês de café, Alfred Bardey, entabulou o que pensou não ser mais do que uma conversa de circunstância com um patrício que conhecera a bordo, um jovem jornalista chamado Paul Bourde. Gabando os seus negócios com sede em Adem, Bardey referiu en passant o nome de um dos seus empregados – um “jovem alto e agradável, de poucas palavras”, como mais tarde o descreveria. Para sua surpresa, Bourde deu um salto na cadeira, tal o choque e genuína surpresa ao ouvir aquele nome. Não que, por uma estranha coincidência, tivesse andado com ele na escola; na verdade, à semelhança de muitos franceses que acompanhavam a cena literária da época, ele simplesmente se convencera de que esse tal jovem funcionário tivesse morrido.

Diante de um atarantado Bardey, Bourde explicou que, cerca de dez anos antes, esse jovem alto e taciturno protagonizara em Paris uma estreia literária “espantosa e precoce”, para desaparecer imediatamente a seguir. Até àquele momento, pelo que Bardey ou qualquer outra pessoa das suas relações tivesse conhecimento, aquele jovem limitava-se a ser apenas mais um funcionário zeloso, capaz de manter a contabilidade organizada. Hoje, são muitos os que o consideram o fundador da poesia europeia moderna. Chamava-se Arthur Rimbaud.

O que Bardey ouviu sobre Rimbaud naquele dia é o que a maioria das pessoas ainda hoje sabe sobre ele: uma carreira deslumbrante e extraordinariamente curta – todas as obras significativas de Rimbaud foram provavelmente compostas entre 1870, quando ainda não tinha dezasseis anos, e 1874, quando acabara de cumprir vinte – e o abrupto abandono da literatura em favor de uma vida de vagabundagem que acabou por conduzi-lo a Adem e depois à África Oriental, onde permaneceu até pouco antes da sua morte, negociando café, penas e, por fim, armas, e amealhando pelo caminho um considerável pé-de-meia.

O grande mistério que continua a assombrar os amantes de Rimbaud é, nas palavras de Henry Miller, esse “ato de renúncia”. Quando Bardey chegou a Adem, esfuziante com a sua descoberta, percebeu, para sua consternação, que o antigo prodígio se recusava a falar sobre a sua obra, descartando-a como “absurda, ridícula, abominável”.

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O facto de Rimbaud ter repudiado a poesia tão impetuosamente quanto outrora derramara o seu talento acaba por, no final de contas, talvez não ser tão surpreendente assim para quem, oferecendo préstimo a um número mesmo que meridiano de sinapses, reconheça no ser humano pasto para incongruências e contradições, tantas vezes incompreensíveis e violentas – aquelas flutuantes e proverbiais titubeações entre o bem que se deseja e o mal que se abraça.

Quem, contudo, assistir aos debates eleitorais – verdadeiro empalamento televisivo que me faz suspirar por um compacto “Natal dos Hospitais 86” acompanhado pelo Best of do Sequim de Ouro em vinil colorido – concluirá facilmente a monumental derrota de Rimbaud diante do moderno homo politicus português: para esta criatura engomadamente aveludada na fácies e nas ideias, até os arremedos de rebeldia lhe são amestrados (a face pilosa em competente desalinho de Pedro Nuno; os all-star marotos de Mortágua assomando sob a mesa nos planos gerais; as lentes de contacto de Rui Rocha; a robustez do windsor de Montenegro) por spin-doctors especializados em arreios, soundbites e vazio.

Dado a taxonomia deste espécime – leve, sedoso, concebido sem mácula – não consentir quaisquer vincos, rugosidades, hesitações, as impurezas, enfim, da carne que, como pepitas, se depositam na nossa voz – panela do nosso garimpo – as suas palavras, meras caixas de ressonância de uma miserável conceção de história e de mundo, são tão diáfanas e difusas que o seu “discurso” não poderia senão ser esta tímida malha deslassada e rarefeita, sem esperança e sem temor.

Homero, opulentamente avesso a tibiezas, não se inibia de usar na Ilíada mais de 60 formas diferentes para dizer que alguém morreu: os heróis homéricos – e as palavras que os cantam – são artesãos da morte cuja manufactura somos convidados a admirar como se de um trabalho de filigrana ou olaria. Tanto para os Aqueus como para os Troianos do mundo desolado dos poemas homéricos, as gerações de homens sucedem-se como gerações de folhas que brotam, caem e são esquecidas. A única redenção possível é aquele fluxo diluviano de palavras, tão perenes como simples, que simultaneamente inumam e preservam o tempo. O que faz de alguém um herói não é a sua terra natal nem a sua avó nem a causa pela qual combate nem o número de gaspeadeiras com que se cruzou, mas o monumental canto que preserva a memória.

Na verdade, o mistério da renúncia de Rimbaud poderá não ser, afinal, assim tão grande. As expressões aparentemente inconciliáveis do seu pensamento e comportamento são mais facilmente compreendidas quando nos recordamos que Rimbaud, à semelhança dos heróis homéricos, nunca chegou a envelhecer: oscilações violentas entre desejo e desprezo, sentimentalismo e maldade não são inéditas em adolescentes. Tal como J. D. Salinger, outro corifeu da inquietação juvenil, Rimbaud pode simplesmente ter descoberto que, à medida que crescia, a urgência do seu objecto desaparecera. Não havia mais nada a dizer. Dificilmente a paixão pelas palavras poderá encontrar melhor remédio do que o amor ao silêncio que por vezes fatalmente se instala entre elas.

Quando tinha 14 anos, Rimbaud concorreu ao desafio escolar de compor em latim um poema, em trímetros jâmbicos, subordinado ao tema “Sancho Pança dirige-se ao seu asno”, um monólogo cheio de humor e verve sobre o deslumbrado despojamento de certas palavras acoitarem a opulência do mundo.

Pedro Nuno, gaiato dado a mais certezas – “Mas o que é que não funciona, diga-me? – deu já orientações à Sanjoanense para a contratação rápida desse tal Cervantes, um trinco manchego e durinho que, disseram-lhe, parece que joga sobretudo pela esquerda baixa.