Em ensaio de 1959, Michael Oakeshott apresenta uma sedutora imagem sobre a história da humanidade: aquilo que designamos por civilização deveria ser entendido como uma longa conversa que mantemos com aqueles que nos antecederam e que legamos ao futuro. Somos herdeiros desse diálogo e somos homens enquanto participando desse diálogo. De modo quase poético afirma, “não parece improvável que tenha sido o envolvimento nesta conversação que nos deu a nossa aparência atual, o homem descendendo de uma raça de símios que se sentaram a conversar durante tanto tempo e até tão tarde que desgastaram as suas caudas”.

Nesse diálogo sem fim, introduzimos novos vocabulários e novas ideias mas também retomamos constantemente o que já foi dito – embora sempre sob um novo olhar. Foi precisamente o que aconteceu com a filosofia de Lucrécio. Ao ser reapropriada pela modernidade passou a servir os propósitos modernos. Ao invés do estado de ataraxia proposto pela filosofia epicurista – condição plena de que gozam os deuses –, os modernos inauguraram, a partir das novas ferramentas científicas de que passaram a dispor, uma nova forma de percecionar a natureza. O filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) é talvez o melhor representante deste espírito.

Em Novum Organum, Bacon rompe com a tradição aristotélica e consagra a ideia de que a natureza deve ser torturada para que nos revele todos os seus segredos. A academia tem debatido a literalidade deste aforismo baconiano e os seus estudiosos recordam sempre a dimensão não utilitarista da sua obra. Mas é inegável que se encontra aqui a semente do espírito moderno que nos faz olhar para a natureza como um objeto para nossa exploração ilimitada e para o conhecimento científico como um meio para superarmos as nossas limitações físicas e biológicas.

Conhecimento seria, então, poder [Scientia potentia est]: poderíamos, por fim, emanciparmo-nos da nossa condição de fragilidade em resultado do absoluto controlo sobre a natureza. Como se, conhecendo todos os seus segredos, pudéssemos deixar de estar, finalmente, sujeitos aos seus caprichos. É esta ilusão de controlo que marca a modernidade e que está, nomeadamente, no espírito do estado moderno: a possibilidade de uma instituição política controlar e providenciar todas as necessidades de uma comunidade. Com informação suficiente, regulação suficiente e comissões, agências, entidades reguladoras, funcionários, técnicos e burocratas suficientes – seríamos capazes de dominar todos os aspetos da vida coletiva e colocar a população a salvo das ameaças que antes escapavam ao nosso controlo.

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É verdade que a necessidade de controlo é fundamental para o ser humano. Necessitamos de sentir que temos algum controlo sobre os acontecimentos da nossa vida sob pena de cairmos em estado de permanente ansiedade. Aliás, os problemas de ansiedade que marcam a sociedade ocidental das últimas décadas resultam, em boa medida, da sensação de que quase toda a nossa vida escapa ao nosso controlo. Somos controlados pela tecnologia digital ao invés de a controlarmos; os parlamentos e governos que legislam e decidem à distância não permitem um controlo democrático; e o mundo globalizado não permite um controlo político sobre os governos nacionais.

E é também esta a ansiedade que marca os nossos dias perante o surgimento de um vírus desconhecido. Perante o desconhecido surge a ânsia de controlo. O recolhimento rápido dos portugueses pareceu-lhes a única forma disponível de controlo. De seguida, pediu-se ao estado que tomasse as medidas necessárias para controlar os efeitos da doença. E à União Europeia, medidas que controlassem os efeitos das decisões anteriores. E como tudo parecia ainda descontrolado, ouvimos no espaço público novas exigências de controlo, desde a presença de militares na rua até à vigilância apertada e denúncia dos incumpridores das regras e monitorização do que é dito nas redes sociais. Por fim, devem avançar as próximas linhas de controlo, como as que podem ser ativadas nos telemóveis digitais sem os quais parecemos já não saber viver.

Se é verdade que a ciência moderna nos levou mais longe do que os Antigos alguma vez sonharam, legou-nos na mesma medida uma ânsia de controlo que nos deixa mais vulneráveis. Francis Bacon estava longe de imaginar, nos primórdios da modernidade, que seria este o caminho percorrido. Mas alguns anos antes do seu nascimento, o filósofo francês La Boétie já tinha enunciado um aspeto essencial da natureza humana: “É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios”. As formas de controlo digitais e totalitárias que se adivinham representam o nosso novo jugo. E teremos sido nós a exigi-lo, enquanto Lucrécio aconselhava ataraxia.