Foi a segunda vez que fiz um funeral de um bebé. A primeira vez que fiz um funeral de um bebé foi a primeira vez que fiz um funeral. Foi no tempo em que estava na Igreja Baptista de Moscavide e a Fatu e o Alexandre, casal de guineenses, tinham tido gémeos. Foi uma gravidez complicada e o primeiro gémeo morreu logo no hospital. A Fatu ainda trouxe para casa o outro mas passadas umas semanas morreu também. Na manhã do enterro o Pastor da Igreja Baptista de Moscavide, o meu Tio Teo, teve um problema que o impediu de chegar ao cemitério de Benfica. Disse-me ao telefone: “Tiago, vais ter de tratar tu do assunto!” Na altura, ainda nem consagrado oficialmente ao pastorado tinha sido. Mas, como o povo diz, o que tem de ser tem muita força.

O bebé chamava-se Jonas e fui ao livro do profeta do mesmo nome para recordar uma esperança ao grupo que se juntava à volta do pequeno caixão: do mesmo modo como o grande peixe devolveu o profeta Jonas para que se cumprisse a vontade de Deus, um dia a vontade de Deus será esta terra não conseguir engolir mais o pequeno bebé Jonas que agora nela enterramos. A meio da mensagem a Fatu desmaiou. Uma mulher negra, grande, desabou e com ela senti que tinha desabado uma cidade inteira. O caixão teria uns cinco, seis palmos, era branco, a pessoa quase que conseguia colocá-lo debaixo do braço. Aquele casal guineense plantou o pequeno Jonas na terra portuguesa e ainda hoje sonhará em encontrá-lo já não em Lisboa mas na Nova Jerusalém.

Nesta semana que passou o funeral foi do Josué. O Josué nasceu à Stephanie, mulher do Felipe. Eles são a Família Tavares, uma família brasileira que chegou à Igreja da Lapa durante a pandemia. A Stephanie tem sangue japonês, italiano, brasileiro—aquela mistura que espanta sempre um povo tão parado no globo como nós portugueses nos tornámos. Souberam logo ao início da gravidez que o Josué tinha uma má formação grave. Mas acreditaram que não lhes pertencia a eles determinar um fim ao filho que, apesar disso, crescia no ventre. Chorámos juntos logo quando soubemos e toda a Igreja resolveu orar por eles sem cessar. Como se diz na gíria evangélica, fizemos um relógio de oração: as pessoas escolhiam períodos de 15 minutos ao longo do dia para garantir que estava sempre alguém a chatear Deus com o assunto.

Claro que pedimos um milagre. Se Deus é pai, pedimos-lhe o que queremos porque o negócio dos pais também é esse, de fazer a vontade aos filhos. Por vezes, não dá. E não deu. Deus não nos deu o milagre que pedimos. Há uma semana e pouco o Josué nasceu sem vida na Maternidade Alfredo da Costa. A Família Tavares em vez de cuidar de um filho teve de cuidar de um funeral. Nem a agência funerária ajudou. Alegando que a maior parte dos casos de nados mortos não recebe grandes cuidados fúnebres, nem da capela mortuária do cemitério de Queluz foram capazes de tratar. Nem sequer vestiram a roupinha ao Josué. Para coroar o seu desmazelo, o carro funerário foi bloqueado pela Emel na hora em que devia estar a chegar à Igreja.

É fácil ter pouco cuidado com gente de vida tão curta como um bebé que não resiste ao parto (imaginem um bebé que nem ao parto chega). É fácil ter pouco cuidado com brasileiros que, desconhecendo as manhas dos negócios portugueses, não têm como defender os seus direitos. Enfim, é fácil ter pouco cuidado. Sobressai por isso o valor da Família Tavares a plantar o pequeno Josué na terra portuguesa e a sonhar encontrá-lo já não em Lisboa mas na Nova Jerusalém. Ainda por cima, Josué é o mesmo nome de Jesus—Jesus era Josué. No sermão do funeral recordei que é por causa da morte de Jesus que podemos confiar na vida do pequeno Josué, que semeámos para a eternidade naquele pequeno buraco em Queluz.

O que partilhei com a minha Igreja na Lapa partilho também com os leitores: o milagre de um bebé com uma má formação grave curada teria grande impacto. Mas não pensemos que é menor o impacto de uma mãe e de um pai que cuidaram e amaram o seu bebé até ao último dia de uma curta vida dada por condenada. Encher as mãos com bênçãos do céu é bom, mas plantar na terra os nossos sonhos interrompidos não será pior. Obrigado, Stephanie e Felipe.

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