A 1 de Dezembro de 2021 o jornal Le Monde publicou um artigo no qual acusava alguns filósofos e ensaístas franceses de promoverem a candidatura presidencial de Éric Zemmour. De acordo com o jornal, parte de uma élite intelectual teria normalizado o discurso racista de Zemmour e tornado o candidato credível aos olhos do eleitorado. Dias mais tarde, Alain Finkielkraut, um dos visados pelo Le Monde, respondeu à letra. Para Finkielkraut há uma obsessão antifascista e anti-racista em França que esconde factos como uma sondagem que revela que 40% dos estudantes colocam a religião acima das leis da república. Uma obsessão que visa reduzir a França a uma agenda de cariz  progressista.

É preciso salientar que Finkielkraut não é fascista nem de extrema-direita. Nem sequer concorda com Éric Zemmour. Foi dos que se opôs a Jean-Marie Le Pen na segunda volta de 2002 e votou em Manuel Valls nas primárias socialistas para as presidenciais de 2017. O problema com que Finkielkraut tem de lidar é que não sendo fascista nem progressista volta não volta é acusado por um extremo de pertencer ao outro extremo. Alain Finkielkraut é simplesmente um francês que quer pensar o seu país e isso pressupõe conhecê-lo. É um intelectual que quer dizer o que pensa sem ser punido por isso.

E o que tem dito é que as políticas progressistas são as grandes responsáveis pela não integração e posterior assimilação das minorias francesas. Ao baixar o grau de exigência de algumas escolas, ao confundir alta cultura com cultura popular, o regime político osctracizou boa parte da população mais desfavorecida negando-lhe acesso ao conhecimento detido por uma elite ou ao alcance desta. Ao ceder no que se entendia por laicidade do Estado, as políticas ditas progressistas deram espaço a que a escola pública deixasse de ser um local de aprendizagem onde todos os alunos fossem iguais. Um bom exemplo disso mesmo sucedeu em 1989. A 18 de Setembro desse ano duas alunas de 13 anos foram impedidas de frequentar a escola porque o véu que utilizavam ia contra as regras do bom funcionamento daquele estabelecimento de ensino. A polémica no país foi acesa. De um lado posicionaram-se os que eram a favor da proibição do véu e do outro os que eram contra. Lionel Jospin, o então ministro da educação, decidiu que era proibido proibir (‘Il est exclu d’exclure’) e deixou que o véu fosse utilizado pelas raparigas. No entanto, e como se estava numa escola laica, manteve-se a proibição dos cristãos utilizarem crucifixos ou quaisquer símbolos religiosos. A discriminação era evidente, mas a consciência sossegou-se porque os muçulmanos eram minoritários. O resultado foi que a escola pública deixou de ser um espaço laico de integração das raparigas muçulmanas na sociedade francesa. Estava feita a divisão.

Alain Finkielkraut não foi o único a fazer estes avisos. Há 7 anos tive oportunidade de referir o alerta de outro francês, Pascal Bruckner. Dizia ele que o estado francês escolheu proteger as minorias afundando-as no seu modo de vida, tradições e cultura ao invés de as integrar na comunidade francesa. Ao fazê-lo, enfraqueceu-as ao ponto de estas se sentirem estrangeiras em França, mas sem outro país que não a França. As políticas progressistas condenaram as minorias a um limbo existencial que dói porque dói não se saber o que se é. Outro alerta foi o de Jérôme Fourquet e que referi numa outra crónica, já para o Observador, em 2018. Segundo Fourquet, a separação social entre privilegiados e os mais desfavorecidos, entre as cidades e o mundo rural, acentuou-se nos últimos 30 anos de forma progressiva e sem que os franceses se tivessem apercebido. A tese de Fouquet, apesar de tentadora, é enganadora (como tentei explicar no dito artigo, a França é um dos países mais igualitários do mundo), pois a separação existe, só que não é social nem salarial mas de índole cultural, como também é entre os que se integraram na globalização e os que ficaram para trás; entre os que têm a segurança do emprego no estado e os que trabalham num sector privado cada vez mais competitivo.

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Segundo Finkielkrault a França corre o risco de se tornar numa pequena nação porque, nas palavras de Milan Kundera, as pequenas nações são as que ponderam o seu fim. E há o risco de a França deixar de existir porque quer ignorar os problemas reais que afectam os franceses. O receio da França se perder não é novo. De Gaulle viveu perseguido com o fantasma não do fim da França, mas da sua grandeza. Na famigerada 4.ª República, o partido comunista oscilou entre os 28% dos votos expressos em 1946 e os 25% em 1956, nas últimas legislativas do regime. Apenas com a nova Constituição, apresentada por De Gaulle em 1958, e devido ao novo sistema de duas voltas, se conseguiu refrear o poder eleitoral dos comunistas. De 150 deputados em 1956, o PCF ficou reduzido a 10. Isto num universo de mais de 500 deputados. De Gaulle compreendeu logo após o fim da II Guerra Mundial que a França se inclinava entre dois abismos. De um lado o rancor por Vichy; do outro o deslumbramento pelo ideal comunista que também vencera a guerra. Os tempos eram difíceis com restrições de vária ordem. Além da áurea da resistência na guerra o partido comunista contava com o apoio dos operários e dos mais desfavorecidos. A democracia francesa resistiu porque se vivam os primeiros dos 30 anos de um glorioso crescimento económico. Aos poucos as pessoas foram vivendo melhor e a pressão comunista reduziu-se. Mas a democracia também resistiu porque De Gaulle compreendeu que a questão argelina tinha de ser resolvida, o que conseguiu com paciência, sem um caminho pré-definido, mas pronto para aproveitar todas as oportunidades.

Os desafios actuais são outros mas assemelham-se. De um lado a França estagnou economicamente, os salários não crescem, fruto de um Estado excessivamente regulamentador para um mundo globalizado, e parte da população foi prejudicada com a saída de algumas indústrias para as economias emergentes; por outro há um receio da islamização do país, fruto da forte presença francesa no norte de África, principalmente na Argélia. Em 1961, De Gaulle resistiu a um golpe de Estado e foi devido ao seu Citroën DS 19 que, no ano seguinte, escapou a uma tentativa de assassinato. Imagine-se algo parecido suceder a Macron e diríamos que a França estava perdida. A memória é curta e a história ajuda-nos a colocar os problemas em perspectiva.

A diferença para os dias de hoje reside na censura não oficial que dificulta e silencia quem não é progressista. Não oficial porque não emana do estado, mas da própria imprensa, da praça pública que usa o politicamente correcto para não permitir que certos assuntos sejam discutidos ou quando estes o são difama quem se afasta da narrativa dominante. Uma democracia e um estado de direito formal, mas que na prática não respira, atrofia e aos poucos definha. Uma democracia sem as válvulas de escape do debate político e de ideias e que é apanhada de surpresa em vésperas das eleições presidenciais em que aqueles que não são ouvidos votam. Trata-se de uma censura mais difícil de combater porque mais difícil de definir e de localizar. Os vigias deixaram de ser os polícias; tornaram-se no cidadão-comum que se indigna sem saber bem a razão do seu mal-estar e clama condenações sem pensar.

Há 5 anos Emmanuel Macron quis ser um presidente reformista para liberalizar a economia. O problema francês é que as suas dificuldades não se reduzem à economia. São também culturais e democráticas. De Gaulle concedeu a independência à Argélia; Macron terá de integrar as minorias na França. Uma lição a termos em conta para não cairmos no mesmo erro em Portugal. Não me refiro a não combater politicamente as forças extremistas, mas em ouvir os seus eleitorados. Um pouco à semelhança do que se fez com o PCP: foi politicamente combatido, mas o seu eleitorado nunca foi acusado de gostar de ditaduras. Simplesmente, eram portugueses que viviam com dificuldades.