Uma família em isolamento, dia 29

Os dedos pequenos a carregar nas teclas. À procura dos acentos, da vírgula, do ponto, do til. A martelar devagar as letras para formar as palavras que já conhece mas sobre as quais tem ainda dúvidas. O sorriso de cada vez que não se esquece de carregar no shift para fazer a maiúscula no início da frase ou nos nomes próprios. A sensibilidade para carregar no sítio certo, com a ajuda do rato ou do touchpad.

E nós ao lado. A prestar assistência permanente ou ao alcance de um “pai!” ou “mãe!”, prontos a intervir se for necessário. Com o tempo a correr, o almoço por fazer, a irmã a pedir atenção também e os minutos que faltam até ao envio daquele relatório ou daquele texto a diminuir rapidamente. Enquanto aqueles olhos tentam perceber a diferença entre o caule e as folhas. Enquanto aquela cabeça tenta fazer no monitor do computador a conta que sempre fez no papel. Enquanto aqueles dedos pequenos continuam a varrer o teclado à procura do ponto de interrogação, do c de cedilha ou do acento circunflexo.

E então? Vai ser assim a partir de hoje com crianças do primeiro ciclo, que têm ainda pouca autonomia digital, e os pais vão finalmente dar em doidos a conciliar isto com o teletrabalho enquanto se tornam peritos no Microsoft Teams (ou no Google Classroom ou noutra plataforma qualquer de ensino à distância e partilha de documentos)? Ou vai ser um alívio porque os miúdos vão estar ocupados e, não sendo bem como ir à escola, pelo menos vai significar um estímulo diferente e os pais vão ter alguma folga?

Arranca hoje, a sério, o terceiro período, e ao fim do dia os pais vão finalmente ter uma ideia do que poderão ser os próximos dois meses. Muitas crianças já estão familiarizadas com o uso de computador e já começaram a utilizar a ferramenta no dia a dia, facilitando-lhes assim estes primeiros tempos. E muitos agrupamentos já deram início a algumas aulas à distância, em tempo real (síncronas) ou graças ao envio de fichas e material para os alunos (assíncronas). Mas quase metade dos alunos do primeiro ciclo em Portugal não teve, até agora, nenhuma noção de e-learning, de acordo com um estudo da Universidade Católica. Para muitas crianças entre os 6 e os 10 anos, o final do segundo período foi apenas isso: acabou mais cedo.

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E como é que vai ser a partir daqui? Ninguém sabe ao certo. Nem o Ministério da Educação, nem os diretores de agrupamento, nem os professores, nem os alunos. Nem nós. Falamos com os amigos e com os primos e os vizinhos e os cunhados e sabemos que em algumas escolas haverá aulas em videoconferência e noutras ainda não sabem bem como vão fazer, mas está tudo à espera para ver como a coisa vai correr.

Ninguém sabe!

Se estivéssemos em meados de março, quando não sabíamos que isto ia demorar tanto tempo, havia um livro aberto para desenharmos unicórnios e arco-íris, hashtags a dizer que “vai ficar tudo bem” e vontade de tentar, experimentar, pôr a mão na massa, deixa lá ver como a coisa corre, se hoje não é perfeito amanhã já será melhor.

Mas não! Estamos em meados de abril e desde que as escolas fecharam e viemos todos para casa estamos muito mais cansados. Os miúdos estão fartos de estar fechados (nós também!), têm saudades dos colegas, andam de bicicleta e patins entre a sala e o quarto porque têm de gastar energia e nós queremos que eles gastem energia, estamos a ver a economia a ir para o buraco e os empregos em risco, temos ideias mas não temos tempo para as colocar em prática e percebemos que não conseguimos conciliar tudo: a atenção de que eles precisam, a atenção que o chefe exige, o cuidado que a casa merece (de onde vem tanto pó?!) e a manutenção da nossa sanidade mental. E já não temos tantas folhas assim no caderno para experimentar, riscar e passar à página seguinte. Já não temos a margem nem a energia para insistir na tentativa-erro.

Hoje começa o terceiro período e se isso significar que vamos deixar de pôr os miúdos em frente à televisão durante algumas horas para conseguirmos trabalhar um pouco… tudo bem. Se em vez disso vamos ter de passar ainda mais tempo ao lado deles a ajudá-los, se vamos ter de dividir o computador com eles porque não há para todos, se vamos ficar ainda mais cansados a trabalhar pela noite dentro depois de se deitarem, porque há coisas para concluir e o patrão quer os relatórios diários do que andámos a fazer durante oito horas… então tudo mal. Quer dizer, nós fazemos. Mas fazemos mal.

Sim, é verdade que há muita gente pior que nós. E com saúde, emprego, uma casa, computador e ligação à Internet, se calhar devia ser mais grato e menos rezingão. Eu sei. E sei que tudo isto se deve a uma pandemia e que há um vírus mortal lá fora e que prefiro isto ao risco de ficar doente ou ver alguém que me é próximo ficar doente. Sei que é o preço a pagar agora pela manutenção da nossa saúde e não há nada mais precioso do que isso.

E sei também que os pais vão fazer o esforço que for necessário para que os filhos aprendam da melhor forma e estarão lá para os ajudar sempre que for preciso. Porque é isso que os pais fazem. E sei que andamos todos cansados e isso faz-nos perder a cabeça a nós e a eles e faz-nos dizer disparates da boca para fora – ou escrever crónicas um pouco mais azedas porque o cansaço se acumula nos sítios mais pequenos e já não sabemos como dar descanso ao corpo e à cabeça.

Começa hoje o terceiro período e sei que vamos todos dar o nosso melhor. Apesar de estarmos muito, muito cansados. Boa sorte a todos.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste

Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento

Dia 26. Não vamos ter ensino à distância

Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia

Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro