Em França, a revolução sai à rua; em Espanha, entrou, por enquanto, num parlamento regional. Os apelos do costume já não funcionam: nem o medo do “caos”, com que o presidente Macron tenta assustar os franceses; nem o medo do “fascismo”, com que as esquerdas até hoje se habituaram a inibir as direitas. Em Espanha, vamos talvez descobrir que “geringonças” há muitas; em França, que quando o poder se propõe pôr os cidadãos “em marcha”, os cidadãos às vezes marcham mesmo, mas não necessariamente segundo a vontade do poder.

Há três erros que podemos cometer em relação aos “coletes amarelos”. O primeiro é contemplar tudo como um problema simplesmente francês. Não é. A União Europeia é uma aliança franco-alemã. Para que possa haver UE, é necessário que a Alemanha e a França funcionem.  Há quinze anos, a Alemanha reformou-se para competir nos mercados globais. Não resolveu todos os seus problemas, mas resolveu alguns: tem excedentes e emprego. A França, pelo contrário, não fez reformas. É o país dos défices e do desemprego. A questão é saber se a Alemanha, onde a validade de Merkel expirou entretanto, está disposta a ser o Atlas que carrega o vizinho aos ombros. Nas ruas francesas, joga-se o destino da UE.

O segundo erro é pensar que se trata apenas do fracasso de Emmanuel Macron. Não é. Porque antes de um fracasso de Macron, ainda por confirmar, estão os fracassos já confirmados da direita gaullista, com Nicolas Sarkozy, e da esquerda socialista, com François Hollande. Desde os anos 90, qualquer reforma em França serviu apenas para os governos serem humilhados por protestos e motins. Daí a lenda do “país irreformável”. Entretanto, os grandes partidos de governo da V República, que já só sobreviviam chantageando o eleitorado com a ameaça dos Le Pen (ou nós, ou o “fascismo”), desapareceram. Em seu lugar, as elites aglomeraram-se à volta de um jovem que era suposto fazer as reformas sem o empecilho da velha dicotomia esquerda-direita. Um colapso do “macronismo” dificilmente significaria o regresso ao anterior sistema partidário. Comecem, à cautela, a imaginar o inimaginável.

O terceiro erro está na nossa economia de esforço interpretativo. Para explicar os coletes amarelos, preferiu-se em geral traduzir os contrastes americanos que, há dois anos, serviram para dar conta de Trump: os “deploráveis” contra as elites, o campo contra as  cidades, a tasca contra o Starbucks, o nativismo contra o cosmopolitismo, etc. Não digo que não haja alguma coisa disso, mas vale a pena desconfiar de qualquer análise que acabe em recomendações natalícias de “compreensão mútua”. O risco, neste caso, é perder de vista o que, numa revolta contra o preço dos combustíveis, é o problema: uma crise fiscal. Na década de 1990, já eram óbvios os desequilíbrios dos regimes sociais europeus. Mas acreditou-se que a “globalização” (que outros achavam ser o problema) poderia resolver a dificuldade, através da criação de riqueza nos mercados globais. Acontece que no caso francês (e em outros), esses mesmos desequilíbrios limitam a competitividade do país. A França enfrenta assim um paradoxo que Portugal e a Europa do sul conhecem bem: quanto menos dinâmica é a economia, mais castigada é a sociedade por impostos, porque os governos precisam de compensar as clientelas, e não há outra via senão o fisco e a dívida. Eis como duram os Estados europeus, navegando entre duas revoltas possíveis: a dos contribuintes e a dos dependentes.

Finalmente, poupemo-nos às analogias ignorantes com os anos 30. Estamos a passar pelo que parece ser o fim de uma época. O pior que podíamos fazer era olhar com os olhos de ontem.

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