Historicamente, a democracia liberal é um sistema político deveras singular, sem precedente na história política da humanidade. É, tanto quanto sei, o único regime que contempla a possibilidade da sua auto-erradicação. Agnes Heller escreveu algures, já não me recordo exactamente onde, que a instituição da liberdade como valor basilar de uma polis implica necessariamente a negação de uma fundação histórica-filosófica imutável ou, se desejarem, imortal.

Qualquer sistema fundado sobre a liberdade será literalmente abismal. A liberdade introduz a possibilidade da escolha e da deliberação pública. A fundação normativa da comunidade política não é revelada, mas escolhida, e, como tal, será inevitavelmente uma criação historicamente mutável. Como seria de esperar, esta mutabilidade infernal será interpretada por qualquer conservador que se preze como origem de um relativismo irreprimível que deve ser ferozmente combatido. Contudo, o que tende a ser esquecido por alguns conservadores empedernidos é que nem as fundações que eram e que são tidas como imutáveis resistiram à mudança.

Seja como for, os consensos de hoje não são os consensos do passado. Propõem-se alterações constitucionais. A esquerda reinventou-se, incorporando um novo léxico ideológico e transgredindo fronteiras outrora tidas como intransponíveis (Geringonça). Marine Le Pen não é Jean-Marie Le Pen. O Papa fala dos direitos da comunidade LGBT. Ou seja, a democracia liberal é, inevitavelmente, um trabalho em progresso ou, como diria Dmitri Nikulin, da New School de Nova Iorque, “é um sistema que vive permanentemente em crise”, redefinindo-se ad aeternum. Sem crises, o que nós teríamos seria a mais bafienta e debilitante “estagnação,” acrescenta o filósofo russo-americano. As crises, portanto, “não são necessariamente catastróficas”, insiste Nikulin.

A social democracia, o conservadorismo liberal, o liberalismo social e a neoliberalismo (etc.) foram engendrados, em grande parte, por graves crises sistémicas. Logo, por mais dolorosas que sejam, as crises podem ser rupturas criativas salutares que preservam a vitalidade e relevância da democracia liberal.

É esta possibilidade de reinvenção, ou do renascimento eterno (Hannah Arendt), que sustenta, da mais concreta forma possível, o imperativo da responsabilidade individual, pilar fundamental do Liberalismo. Seremos responsáveis pela polis que criarmos livremente. E é por esta e por outras razões que o confronto da democracia liberal com a sua possível morte e/ou transfiguração radical não é algo que nos deva amedrontar.

A crença de que o homem preferirá quase sempre a liberdade à subjugação não é ingénua. Não é a ontologia que o move em direção à liberdade. É a biologia. Os dissidentes, os radicais e os revolucionários das mais variadas cores e tendências são os que melhor compreendem as contradições do sistema em que vivemos. Alain de Benoist, pai da Nova Direita europeia, cita inúmeros filósofos pós-modernos, esquerdistas radicais, quanto interpreta a nossa presente condição social e política. A sua crítica das maleitas do Liberalismo é penetrante e elucidativa. Este cosmopolitismo pode ser tido como contraditório em termos político-ideológicos pelos novos inquisidores, mas não o é filosoficamente. Chantal Moufe, esquerdista radical belga, cita e elogia Carl Schmitt. Porque é que nós, cidadãos livres, não podemos ouvir e conviver com o Dr. Jaime Nogueira Pinto?

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