Foi no passado dia 8 que, na Fundação Calouste Gulbenkian, se procedeu à entrega do Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes ao Professor Doutor Manuel Braga da Cruz, ex-Reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP).

A sessão foi presidida por D. João Lavrador, Bispo de Viana do Castelo, na sua qualidade de Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, da Conferência Episcopal Portuguesa, contando também com a presença do Professor José Carlos Seabra Pereira, Director do Secretariado Nacional de Pastoral da Cultura, do Dr. Carlos Magno, representante da Fundação Ilídio Pinho, e do Prof. José Miguel Sardica, da UCP, que fez, com o saber e a erudição que se lhe conhecem, o elogio do galardoado.

Coube ao Dr. Guilherme de Oliveira Martins, administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, fazer as honras da casa, dando as boas-vindas aos presentes, entre os quais se contavam Suas Altezas Reais os Duques de Bragança, e os ex-Presidentes da República, General Ramalho Eanes e Professor Aníbal Cavaco Silva, que se faziam acompanhar pelas suas mulheres. Na assistência, que excedia amplamente a capacidade do auditório, encontravam-se também a Professora Isabel Capeloa Gil, Reitora da UCP, e o Professor João Carlos Espada, entre outros docentes universitários, representantes de instituições católicas e figuras marcantes da cultura portuguesa, de que o Professor Manuel Braga da Cruz é, sem favor, um nome maior.

O prémio Árvore da Vida, atribuído pela Comissão Episcopal da Cultura, está associado à memória do Padre Manuel Antunes, uma referência não apenas do catolicismo português, como também da nossa cultura nacional.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este prémio é significativo da relevância nacional do pensamento católico que, mesmo não pretendendo a exclusividade, mais própria das sociedades confessionais, goza de uma justa proeminência num país que nasceu e se desenvolveu à luz da fé cristã. De facto, o Cristianismo, em termos sociológicos, não pode ser, no nosso país, equiparado a nenhuma religião ou ideologia, porque é, mais do que qualquer outra mundividência, fundante da nossa identidade colectiva, forjada nos ideais da reconquista.

Se a origem da nacionalidade lusitana tem um cariz profundamente religioso, o mesmo se pode dizer do período áureo da nossa expansão. Com efeito, os descobrimentos não foram feitos sob a égide do escudo nacional, em jeito imperialista, mas sob o patrocínio da Cruz de Cristo, porque era uma empresa projectada e realizada numa perspectiva de evangelização e de encontro de culturas. Se é certo que nem sempre os protagonistas desta epopeia foram fiéis a estes princípios – lamente-se, a este propósito, a escravatura – também é verdade que Portugal, graças à inspiração do Evangelho, soube ver noutras gentes povos irmãos, com os quais ainda hoje, desfeito o império, guarda relações de especial fraternidade.

Foi sobre este sentido transcendente do saber, também no que respeita às ciências sociais, que o Professor Manuel Braga da Cruz proferiu a sua magistral lição, em agradecimento ao prémio agora concedido: “A preocupação maior do cientista social é a descoberta da verdade na realidade social e nas suas interpretações, contra o empirismo facial, contra o relativismo subjectivista, contra as leituras ideológicas deturpadoras. A sociologia, como ciência da sociedade e da cultura é, por sua própria natureza, uma sociologia crítica, empenhada no desvelamento da opacidade e da espessura da realidade social, na prossecução do encantamento da verdade. ‘Por dentro das coisas é que as coisas são’ dizia o poeta Carlos Queiroz. As ciências sociais precisam de ir ao interior das aparentes manifestações sociais, para lhes desvendarem a verdade. As aparências iludem. A realidade social, na sua verdade, é uma realidade velada e obscura a carecer da iluminação que rasga e trespassa o seu aspecto fenoménico. A investigação sociológica é uma investigação de profundidade, de interioridade.

Frente a uma sociologia meramente descritiva da realidade social, Braga da Cruz propõe uma sociologia ontológica, à qual não bastam os dados estatísticos porque, como ciência que é, procura a verdade que revela a essência da humanidade e que subjaz sobre as diferentes formas, ou aparências, da sociedade.

A esta sociologia em profundidade, ou metafísica do social, não é alheia a fé de Braga da Cruz. Com efeito, a ciência social que se limita a inventariar usos e costumes, abdicando de qualquer juízo valorativo, mais não é do que uma leitura empírica da realidade e, portanto, um conhecimento pré-científico. O que estabelece uma ciência social como verdadeiro saber é o que transcende essa aparência, nas razões que a explicam e fundamentam, de forma análoga como também o estudioso da natureza não se limita a observar o que acontece no universo, mas nele procura as regularidades susceptíveis de serem formuladas em forma de leis.

Ora, se a lei é o que, em geral, determina o que deve ser, tanto no âmbito natural como social, talvez não seja descabido afirmar que a ciência nasce da observação empírica, ou ontológica, para concluir no dever-ser, ou seja, no que é deontológico. Neste sentido, pode-se estabelecer uma certa analogia entre as ciências da natureza e as ciências sociais: enquanto as primeiras, por hipótese, conhecem os fenómenos naturais e, neste sentido, logram enunciar as respectivas leis; as ciências sociais investigam a natureza humana e concluem no valor ético dos seus comportamentos. Embora seja da praxe dizer-se que do ser não se pode derivar o dever-ser, na realidade é o ser que determina o dever-ser que, sem esse fundamento, seria arbitrário: é a qualidade de pais (ser) que gera o dever de obediência e de respeito de seus filhos (dever-ser).

Neste percurso, a fé não é alheia à razão, mas um seu complemento, no entendimento de Braga da Cruz: “A fé constitui uma iluminação prioritária para o cientista social, que inunda com claridade a obscuridade do real obnubilado. A fé é como o sol que levanta a neblina, uma espécie de ‘luz de nevoeiro’ que permite penetrar no invisível, tornando perceptível o encoberto. A fé é, por isso, um suplemento da razão.

O ex-Reitor da UCP, ao expor de forma magistral a relação entre a fé e a razão, não podia deixar de citar Bento XVI, cujo magistério, até antes de aceder à cátedra de Pedro, tanto sublinhou esta relação de recíproca dependência: “A cientificidade da razão fundada apenas na experiência e na verificação empírica, reduz a amplitude do conhecimento, como o sublinhou Bento XVI, no seu discurso de Ratisbona. O porquê da existência dos factos empíricos ultrapassa a simples razão científica. ‘O ocidente – disse na ocasião o Papa Ratzinger – vive ameaçado por esta aversão às questões fundamentais da sua razão’. Recomendava, por isso, ‘a coragem de se abrir à vastidão da razão, e não à rejeição da sua grandeza.’ E no discurso ao Reichtag de Berlim, insistiu que a visão positivista do mundo e da sociedade, embora não renunciável, ‘não é uma cultura suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude’. ‘Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente … diminui o homem e ameaça a sua humanidade’.

Na conclusão da sua brilhante alocução, o Professor Manuel Braga da Cruz agradeceu o prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, mas fez mal. Com efeito, não foi o ex-Reitor da UCP que foi honrado com este galardão, mas o prémio, e a memória do Padre Manuel Antunes, que foram distinguidos por quem tanto merecia esta distinção. Para além do reconhecimento do seu mérito pessoal, esta homenagem também recorda quanto a cultura portuguesa, e as ciências sociais em particular, devem à Igreja católica e à fé cristã.