Na passada sexta-feira, o meu querido amigo e colega João Pereira Coutinho entrou no meu gabinete, no nosso comum Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, e depositou suavemente um livro sobre a minha velha mesa de madeira. “A new book, Sir?”, perguntei-lhe-ei eu, na nossa linguagem idiomática. No tom bem-disposto que sempre o caracteriza, ele respondeu simplesmente: “Just the Preface, Sir,  I’m afraid. Trata-se de um presente de Natal atrasado, ou/e de um presente de Ano Novo”.

Olhei para a bela capa do livro, uma praia sob neblina, com montanha ao fundo, e li com surpresa o título — O Crepúsculo em Moledo e outras elegias. Terei até lido alto o nome do autor — António Sousa Homem — e terei perguntado “Quem é?”. Só depois reparei num subtítulo em letras mais pequenas, “Crónicas de um reaccionário minhoto”, seguidas de “Prefácio de João Pereira Coutinho”. E terei dito qualquer coisa do género “um reaccionário do Minho com um Prefácio seu? Terei de ler isto com a maior urgência.”

E assim fiz, logo que várias incontornáveis obrigações me permitiram começar a folhear o livro. E, desde que comecei, ainda não parei. E senti um impulso irresistível para escrever sobre este verdadeiro “achado” — já nesta crónica de hoje (que, como se compreende, tive de escrever ontem, antes mesmo de ter concluído a leitura do dito “achado”).

O “achado” denuncia aliás uma grave ignorância minha. Afinal, o autor — nascido em 1921 (!) — já escreveu crónicas no Independente e escreve agora no Correio da Manhã. Cúmulo dos cúmulos, já publicou dois livros de crónicas, um com Prefácio de Maria Filomena Mónica, outro com Prefácio de Pedro Mexia. E eu fui mantido em total ignorância!

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Que posso dizer resumidamente sobre este “achado” que tenho lido com imenso prazer e interesse crescente? Obviamente, em primeiro lugar, a notável qualidade literária: doce, elegante, envolvente, irresistivelmente clássica. Em segundo lugar, a vasta cultura literária, estética e política que deixa transparecer — sem nunca ceder à tentação vulgar de exibir. Em terceiro lugar, e creio que acima de tudo, a tranquilidade da escrita. O nosso “reaccionário minhoto” desafia todos e cada um dos dogmas politicamente correctos actualmente dominantes entre nós (e não só entre nós). Mas esse desafio nunca é agressivo; o autor nunca está zangado; e sempre transmite uma atitude de suave distanciamento, critico mas tolerante, de “live and let live”.

O autor por vezes parece atribuir esse “fair-play” ao facto de sua família ter sido “Uma família sempre do lado errado” (p. 291) — desde que defendeu D. Miguel em 1834, depois se opôs à República em 1910 e nunca acreditou em Salazar durante o Estado Novo. Não posso nem devo questionar essa interpretação de quem conhece, herdou e viveu essa tradição familiar. Mas gostaria de recordar que há pelo menos duas maneiras de perder, ou de “estar do lado errado”.

Uma, a mais vulgar, é o ressentimento — que em regra gera ódios tribais e zangas permanentes . Outra, a mais elevada, é a do “fair-play” — que aceita a derrota, sem por isso ter de abandonar os pontos de vista derrotados. Esta é seguramente a atitude do autor, António Sousa Homem. Por isso mesmo, João Pereira Coutinho diz no excelente Prefácio que o “reaccionário minhoto” é na verdade um conservador, não exactamente um reaccionário.

Não preciso de acrescentar que existe um forte elemento anglófilo na atitude de “fair-play” de António Sousa Homem. Ele próprio deixa-nos saber repetidamente ao longo do livro a intensa tradição anglófila de sua família e dele próprio — onde encontrei com gosto a comum preferência pelo tweed e pelo Daily Telegraph.

O mais marcante traço anglófilo, no entanto, reside noutro lugar: na disposição do autor para apreciar e usufruir o seu próprio modo de vida, que ele e seus antepassados  nunca autorizaram que fosse centralmente desenhado por terceiros. Michael Oakeshott descortinou nessa disposição para usufruir (a disposition to enjoy) modos de vida descentralizados o elemento distintivo do conservadorismo liberal inglês. Esta disposição para usufruir está patente ao longo de todo o livro de António Sousa Homem, com passagens de rara beleza. Apenas um exemplo:

“Esta impressão de aparente desordem faz de Moledo um caso único na história balnear portuguesa. Há pinhais atravessados por um comboio que não cumpre horários [este ponto talvez não fosse indispensável, digo eu], há grãos de areia  na esplanada do P’ra Lá Caminha (em cuja esplanada escrevo esta crónica com a mesma Parker que serviu ao velho Doutor Homem, meu pai, e a Dona Ester, minha mãe, para assinarem o assento de casamento), há pessoas que vejo há trinta anos a descer o areal em busca de sol bravo do Estio, como se fosse uma salvação. Se isto não é o sinal de uma beleza inequívoca, é porque passei uma vida inteira enganado.” (p. 94)

Não creio que tenha passado uma vida inteira enganado, Sir. E, já agora, seja-me permitido acrescentar que o sentimento de felicidade, patente nesta e em muitas outras passagens do livro, foi definido como estando no centro do chamado “espírito inglês” pelo excêntrico historiador de Oxford, A.L. Rowse:

“No centro do espírito inglês está a felicidade, uma profunda fonte de contentamento com a vida, o que explica o desejo mais profundo do inglês, que o deixem em paz, e a sua disposição para deixar os outros em paz, desde que eles não perturbem o seu repouso”. (A. L. Rowse, The English Spirit: Essays in History and Literature, London, Macmillan, 1945, p. 36).