“Foi o momento mais importante da vida da nossa Europa desde a criação do Euro”. Esta frase disse-a Emmanuel Macron aos franceses depois de aprovados os 750 mil milhões de euros do Fundo de Recuperação. Enquanto em Portugal nos congratulávamos com a chegada de mais dinheiro (e de Jorge Jesus), enquanto PS e PSD acordaram o fim dos debates quinzenais no Parlamento, outros discutiram as consequências do que se passou em Bruxelas.

Por exemplo: como é que vão ser pagos os 750 mil milhões de euros que a UE vai obter  nos mercados internacionais? Como é que esta dívida, que é europeia, vai ser paga? Em resposta a essa pergunta, Macron explicou na TF1 que, no mesmo acordo assinado em Bruxelas, foi aprovada a criação de recursos europeus próprios. Ou seja, e nas palavras do presidente francês, dois novos impostos (cujo lançamento e meios de liquidação ainda estão a ser estudados): um sobre as grandes empresas internacionais, nomeadamente Google, Amazon, Facebook e Apple, e outro a incidir sobre as empresas mais poluentes. O chamado imposto verde.

O objectivo é que a dívida, contraída pela Comissão, seja paga pelas grandes multinacionais. Sucede que este passo gigantesco que a UE deu e que poucos referiram em Portugal acarreta três perigos. Em primeiro lugar, os impostos a que Macron alude não existem ainda. Ou seja, a UE vai contrair dívida sem que tenha ainda forma de a pagar. Se os impostos que Marcon menciona não forem lançados ou se o montante que se arrecadar com estes ficar aquém das expectativas, alguém vai ter de pagar a diferença e esse alguém somos nós, os cidadãos dos estados europeus.

O outro perigo é a porta que se abre e que permite que o procedimento se repita. Na próxima crise, perante a próxima necessidade que nem tem de advir de uma crise mas do maior papel que a Comissão Europeia vai necessariamente ter na direcção da economia, será mais fácil à UE contrair mais dívida, distribuí-la pelos estados europeus em troca de mais impostos europeus. Conforme referi na semana passada está aberta a porta a uma maior centralização do poder em Bruxelas e, quem sabe, ao federalismo europeu. A relação de cada um de nós passará a ser cada vez menos com o governo nacional e mais com Bruxelas. O terceiro perigo devia ser de percepção mais linear, mas quem governa normalmente esquece-se que as entidades não públicas são livres de escolher. Na verdade, perante os novos impostos europeus pode acontecer, tendo em conta que o mundo já não se reduz à Europa, que tanto a Google, como a Amazon, Facebook e Apple decidam reduzir os seus investimentos na UE e apostar noutras paragens.

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Esta nova realidade traz depois consigo duas consequências que não devemos desprezar. Uma, Macron referiu no livro ‘Révolution’ que lançou com a sua candidatura às presidenciais francesas e que repetiu no discurso que proferiu na Sorbonne em Setembro de 2017: o estabelecimento de um ministro das Finanças europeu que lança, liquida, cobra impostos e gere o orçamento europeu. Seria o fim do Eurogrupo e a sua substituição por alguém que governaria as contas públicas europeias a partir de Bruxelas (ou de Paris ou de Berlim).

A segunda consequência é a legitimidade democrática desta nova construção europeia que Macron não descansou enquanto Merkel não lhe concedeu o aval necessário. Havendo um verdadeiro governo europeu, porque gere o dinheiro que passaremos a pagar-lhe e não o que recebe dos estados, este governo tem de ser eleito ou viveremos num sistema que de democrático terá muito pouco. E é nesta altura que colocamos a questão de saber em quem devemos votar: nos que partilham a nossa visão de sociedade ou nos nossos compatriotas? Será a identidade nacional mais forte que a identidade política? Até que ponto o que é justo, ou mesmo benéfico para um cidadão individual se consegue sobrepor ao interesse da maioria de um país? Ou colocando a questão ao contrário: até que ponto o interesse da maioria num país se sobrepõe ao que é justo, ou mesmo benéfico, para um cidadão individual? É possível democracia sem identidade nacional? Como é que fica um país como Portugal que se situa nas franjas do continente? Esquecido como foi António Costa que passou o último Conselho à espera que os líderes europeus entrassem na sala para lhe contarem o que decidiram?

Este é o preço dos 15,7 mil milhões de euros. Falou-se muito que a Europa tinha de dar uma resposta que estivesse à altura da crise pandémica. Falta agora saber se estará à altura do próximo desafio. Um desafio imenso, maior que o de qualquer crise financeira, porque será de identidade.