As grandes transformações desta década marcarão definitivamente a história e o futuro da União Europeia. O conteúdo dos discursos da Presidente Ursula von der Leyen sobre o estado da União (14 de setembro 2022) e o programa da Comissão para 2023 já deixam perceber a macro escala e a natureza crítica dessa Grande Transformação à maneira de Polanyi (Polanyi, 1944). Para um académico dos assuntos europeus, como eu, este é um desafio de uma magnitude nunca vista acerca do modo como deve ser conduzida a contingência europeia (Covas,2016). Com efeito, tudo leva a crer que o soft power da União Europeia deixou de marcar a sorte e o rumo da política europeia e que, desta vez, é a geopolítica que prevalece sobre a geoeconomia. Verificamos uma convergência inusitada de macro fatores com muitos efeitos cruzados e um impacto muito variável sobre o curso dos acontecimentos que ninguém consegue antecipar e determinar. Durante esta década tudo pode acontecer ao projeto de construção europeia. Vejamos alguns desses fatores críticos que são outros tantos fatores de transformação.

1. A guerra na Ucrânia e as relações com a Rússia

Escrevo no mesmo dia (20 de fevereiro) em que o Presidente Biden visita a Ucrânia. Neste momento, ninguém se atreve a prognosticar um acordo de paz ou mesmo um cessar- fogo. Doravante, a União Europeia terá uma pesada agenda ucraniana às suas costas, que vai dos custos da guerra à reconstrução e à adesão europeia da Ucrânia. Em todos estes momentos a União Europeia enfrentará um sério contencioso com a Federação Russa que se prolongará para lá de 2030. Estamos perante um grande fator de transformação da política externa de vizinhança europeia.

2. A segurança e a defesa europeias

Vamos assistir inevitavelmente a uma comunitarização progressiva das indústrias de defesa e segurança cuja rapidez e efetividade será marcada pelo ritmo e intensidade da guerra. Assistiremos provavelmente a um arrefecimento da guerra quente e a uma escalada para diferentes áreas da guerra fria, em especial a guerra informática e a ciberguerra. Este compasso de espera servirá, ainda, para um novo período de rearmamento que justificará a criação de uma indústria de defesa europeia. Estamos perante um grande fator de transformação da política de segurança europeia.

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3. O futuro do mercado energético europeu

O futuro do mercado energético europeu já aí está, em plena comunitarização, com um novo mix energético, novas interligações no mercado interno, uma nova regulação de preços para combater os impactos da energia e novas cadeias de valor em rápida construção nos domínios das energias renováveis, do hidrogénio e dos materiais raros necessários à fabricação de baterias, referindo-se, ainda, a criação de um fundo soberano para o efeito. Estamos perante um grande fator de transformação da economia europeia.

4. O Pacto ecológico e a neutralidade carbónica

O pacto ecológico europeu é de tal modo vasto nos seus objetivos (10 pilares) que o seu maior problema não é a força da sua legitimidade, mas a sua potencial efetividade e transição justa, se tivermos em devida a conta a extrema variedade dos seus efeitos e impactos no espaço e no tempo. É justamente esta assimetria no espaço e no tempo que gera o risco potencial de colisão com a globalização e a competitividade, se nos lembrarmos, por exemplo, da revisão do sistema de comércio de emissões, da revisão da tributação de energia ou do mecanismo de ajustamento de carbono na fronteira, para citar apenas os mais relevantes. Em síntese, teremos pacto ecológico europeu para toda a década e para lá dela e este é um grande fator de transformação da economia e da sociedade europeia.

5. A reindustrialização europeia e a globalização comercial

A transição energética e a descarbonização da economia, a transformação digital e a reformulação das cadeias de valor, os impactos cruzados das sanções sobre a geopolítica europeia e a segurança cibernética, não só promovem uma certa reindustrialização da economia europeia como colidem com as correntes convencionais da globalização comercial, financeira e tecnológica. Estamos perante um grande fator de transformação da economia europeia e das suas relações externas.

6. A agenda digital e o modelo social europeu

A agenda digital europeia tem muitas extensões e derivações que não é fácil tipificar. Tal como a revolução energética e a neutralidade carbónica, a revolução digital e a inteligência artificial têm muitos efeitos assimétricos no espaço e no tempo que não são fáceis de delimitar, controlar e corrigir em tempo real. As economias nacionais e regionais já estão a adotar programas de especialização inteligente, mas a estrutura empresarial e o grau de literacia têm pontos de partida muito diferenciados. Um desses impactos mais visíveis refere-se ao mercado laboral e, em geral, ao modelo social europeu. Estamos perante uma grande transformação da economia europeia e do seu modelo social.

7. O pacto das migrações

Um dos fatores mais críticos desta grande transformação diz respeito ao pacto das migrações e ao modo como lidamos com os fluxos migratórios, mais regulados ou mais erráticos. Em ambos os casos, trata-se de estabelecer acordos com os países de origem desses fluxos e, sempre que possível, conciliar a ajuda ao investimento nesses países  com programas de formação de mão de obra que permitam consolidar fluxos de exportações  do sul global para os países ocidentais que são dadores de ajuda. Não é possível promover a ajuda ao investimento nesses países e, ao mesmo tempo, estimular os fluxos erráticos de população. Estamos perante uma grande transformação das políticas migratórias.

8. O multilateralismo à la carte e as áreas de influência

Quando dizemos que na atual conjuntura a geopolítica prevalece sobre a geoeconomia isso significa que o multilateralismo liberal institucionalizado que conhecemos deu lugar a uma multipolaridade de áreas de influência e um multilateralismo à la carte, como aliás se observa hoje com os países do chamado sul global, que são objeto de operações de arregimentação para as causas da geopolítica de ocasião. Este movimento geopolítico confunde e instrumentaliza os países do sul global e alimenta e aproveita aos países mais oportunistas. Estamos perante uma grande transformação da política de ajuda e cooperação ao desenvolvimento.

9. A política de alargamento

Um dos fatores mais críticos desta década diz respeito à política de alargamento e adesão à União Europeia. Trata-se de um fator politicamente muito sensível, não apenas para os países que aguardam o desenrolar efetivo das negociações  de adesão e observam eventuais discriminações motivadas por fatores graves de última hora como a guerra entre a Ucrânia e a Rússia (lembremos o caso da Turquia que marca passo há décadas), como também para a União Europeia que pode ver nascer no seu interior um forte movimento contestatário de países relutantes aos alargamentos. Estamos perante uma grande transformação de política externa de efeitos e consequências imprevisíveis para a vida interna da União Europeia.

10. As reformas internas da União Europeia

Tudo o que dissemos tem uma dose de incerteza muito acentuada e a regra nesta circunstância pode ser formulada do seguinte modo: uma baixa integração europeia, mais intergovernamental, não cria as condições suficientes para receber os novos aderentes, uma alta integração europeia, mais federal, cria um número crescente de Estados europeus relutantes e uma Europa a várias velocidades que pode, a prazo, destruir a própria União Europeia. Das reformas financeiras (mais recursos próprios e mais mutualização) até às reformas institucionais, do modelo social europeu (com os fluxos migratórios) até à nova política de vizinhança a leste a sul, estamos perante grandes transformações nas políticas internas da União Europeia.

Nota Final

A dúvida que resta é a de saber se as grandes transformações referidas podem convergir e fazer eclodir uma Grande Transformação à maneira de Polanyi, isto é, uma mudança paradigmática do projeto europeu nesta década impulsionada por um fator externo de grande relevância geopolítica. Refiro-me, em primeiro lugar, a uma guerra fria longa mantida por uma espécie de cortina de ferro cibernética entre a Ucrânia  e a Rússia, em segundo lugar, a uma aliança sino-russa tendo em vista a criação de um grande espaço euroasiático alternativo ao ocidente alargado ou. ainda, em terceiro lugar, a uma guerra fria declarada no indo-pacífico por causa de Taiwan. Seja como for, esta década, para o melhor e para o pior, marcará uma viragem decisiva no projeto de construção europeu. Esperemos que prevaleça o bom senso, agora que passa um ano sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia.