Uma família em isolamento, dia 48

Um mês e meio depois de nos fecharmos em casa e começarmos a mudar de rotinas, a minha filha mais nova teve finalmente vontade de sair para o exterior. Aconteceu ontem, dia 1, depois do fim dos festejos da CGTP na Alameda D. Afonso Henriques, quando achámos que já era seguro dar uns passos lá fora, ainda que tivéssemos de contornar vários grupos de pessoas de máscara pelo queixo (a foto de grupo durante o discurso foi bonita, mas o antes e o depois não teve nada de belo nem de isolamento social responsável).

Não sabemos bem por que tinha ela desejo de rua desta vez, mas antes que mudasse de ideias aproveitámos a maré e pusemos o pé no exterior sem ser preciso estar a convencê-la durante algum tempo, como aconteceu por diversas vezes nas últimas semanas. Desde que as escolas fecharam, fomos várias vezes à rua para passear, fazer exercício, apanhar ar, espairecer. E, como qualquer criança de 6 anos que chega ao recreio, de todas as vezes a Madalena correu, saltou, brincou, cansou-se, divertiu-se. Mas de todas as vezes era preciso aliciá-la, convencê-la, recorrer aos melhores argumentos para sair – nomeadamente os gelados, que se revelaram um excelente isco, a que vai ser difícil dizer não quando tudo voltar ao normal (o que quer que isso seja). E, de todas as vezes, era ela que pedia para regressar. Porque estava cansada, porque queria brincar no quarto, porque estava farta de ouvir que não podia tocar nos bancos de jardim, devia afastar-se das pessoas e tinha de evitar levar as mãos à cara. Mas ontem não aconteceu isso. Ontem foi ela que quis sair, talvez cansada de estar fechada. Ao fim do dia perguntei-lhe se amanhã (hoje) queria voltar a fazer ginástica lá fora, mas remeteu-se novamente a um “logo se vê”. Um dia de cada vez…

A partir de segunda-feira as coisas começam a mudar. E embora as saídas para a rua continuem a ser precárias – estamos todos obrigados ao “dever cívico de recolhimento” –, já temos mais pretextos para o fazer. Vão abrir algumas lojas, assim como livrarias, cabeleireiros, e stands. A meados do mês reabrem as creches e a partir de 1 de junho o leque de opções alarga ainda mais. A vida vai começar a mudar aos poucos e iremos habituar-nos ao quotidiano da máscara e da distância segura (espera-se). Está tudo na lei, está tudo explicado e as dúvidas que surgirem entretanto serão esclarecidas.

Mas o medo não se vence por decreto. E o receio que a minha filha de 6 anos sente não é muito diferente do pavor de milhares de pessoas que nas últimas semanas encontraram os seus próprios mecanismos de segurança para lidar com tudo isto. As autoridades estão atentas, sabe-se que a saúde mental de muita gente poderá estar comprometida e há dezenas de psicólogos que estão já a dar assistência terapêutica gratuita em situação de crise, nomeadamente através do projeto acalma.online, promovido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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Sabemos que a vida vai começar a mudar mas o medo do exterior, do contágio, do contacto com outras pessoas, dos encontrões inadvertidos, dos apertos no metro e no autocarro, esse medo paralisa e tranca a porta da rua para tantas pessoas. O medo de tocar em superfícies contaminadas, das partículas em suspensão se alguém espirra a dois metros de nós. O medo de largar a casa confortável, segura, descontaminada, quase asséptica, onde não entra ninguém há mês e meio. Para muita gente, a barreira maior ainda está por transpor e não é por algum comércio começar a abrir e por se mudar o nome de emergência para calamidade (o que também não dá muita segurança, diga-se) que o medo vai embora.

Muitas empresas estão preocupadas com o bem estar emocional dos seus funcionários e tentam desenvolver atividades à distância para os ajudar. Muitas famílias sabem que os seus seniores são um grupo de risco físico e mental e tentam garantir-lhes a segurança emocional de que precisam. Muitos pais sabem que os filhos estão fragilizados e com medo e tentam alternativas mais ou menos engenhosas (gelados, gente, gelados) para lhes transmitir segurança.

Mas há uma enorme franja de população trancada em casa com um pavor terrível do que aí vem e do vai significar este desconfinamento no muro de segurança que conseguiram construir à sua volta nas últimas semanas. Durante semanas ajudámos os vizinhos a manterem-se entre quatro paredes. Agora, se calhar, precisamos de os ajudar a sair.

Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):

 

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?

Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”

Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas

Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa

Dia 20. A vida em suspenso

Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?

Dia 22. “E se te vestisses de professora?”

Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste

Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento

Dia 26. Não vamos ter ensino à distância

Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia

Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro

Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio

Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril