Nunca será demais recordá-la, mas num tempo e numa sociedade em que o medo se instalou, em que a segregação começa a ganhar terreno, em que as narrativas se tornaram verdades oficiais, em que o debate foi substituído pela mera propaganda e em que vão rareando as vozes dissonantes dos poderes instalados, é sempre um bálsamo voltar a uma das grandes mulheres do século XX português.

Vera Lagoa, pseudónimo de Maria Armanda Falcão, nasceu à esquerda e morreu nos braços de uma direita minoritária depois de ter passado boa parte da sua vida, nomeadamente durante o PREC e os anos que se lhe seguiram, a ser, fora dos partidos, a grande voz de uma grande maioria de portugueses que não desejava a ditadura do passado, mas que também recusava a ditadura do futuro que durante alguns anos se desenhou.

Acolheu presos políticos, ajudou comunistas na clandestinidade, participou activamente na campanha presidencial de Humberto Delgado, foi vítima do lápis azul da censura, viveu com esperança e alegria o 25 de Abril e depressa se desencantou com o caminho que o país levaria depois da revolução.

Foi vítima de atentados à bomba, de detenções ilegais, de censura e processos judiciais já naquilo a que se designava de democracia. Para sempre admiradora de militantes comunistas da velha escola, apesar das suas discordâncias, foi rápida a descobrir aqueles a que chamou “os comunistas de 26 de Abril” – tanta gente que tinha feito a sua vida de braço dado com o regime deposto, ainda que por razões de sobrevivência, que talvez pelas mesmas razões se tenha convertido rapidamente ao radicalismo revolucionário, acusando Vera Lagoa de promover o fascismo contra os caminhos da revolução.

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Nos jornais onde escreveu ou nas salas de audiência onde foi julgada, Vera Lagoa não deixou de se defender. Sempre ao ataque: ela nunca pactuara com a ditadura, não tinha sido nomeada para cargos públicos pelo Estado Novo, não tinha sido colaboradora ou profissional da PIDE ou da Legião Portuguesa, nunca fora condecorada pelas instituições da ditadura, pelo que não aceitava quaisquer lições de neorevolucionários que tinham sido membros do Governo, que tinham recebido condecorações, benesses e favores da ditadura, alguns deles até o crachá de oiro da PIDE. Vera Lagoa era, acima de tudo, uma mulher que não se calava, que não se vergava e que não tinha medo. Sempre provocadora no país do respeitinho, sim, mas procurando a justiça das coisas, não se coibiu de afrontar amizades e relações pessoais em nome do que entendeu ser superior a elas.

Quando levou mais de cem mil pessoas à rua para comemorar a independência, a 1 de Dezembro, repórteres da imprensa internacional perguntaram-lhe o que queria ela ser, ali antevendo ambições políticas. Vera Lagoa respondeu que queria continuar a ser directora do seu jornal. Tempos depois, em entrevista, afirmou que os seus lemas sempre tinham sido a democracia, a justiça social, o combate à corrupção e à mediocridade. Num país sem cultura de confronto e de contra-poder, onde tantos, da política às empresas, do jornalismo ao desporto, vivem permanentemente de acordo com a situação, sempre disponíveis para serem eles próprios o tapete do poder, seja ele qual for, vítimas das suas ambições e da sua mediocridade, é natural que Vera Lagoa não seja admirada ou sequer recordada.

Maria João da Câmara fez-nos o enormíssimo favor de corrigir uma lacuna e escreveu ‘Vera Lagoa – Um Diabo de Saias’, um livro – publicado hoje, edição Oficina do Livro – sério, completo e objectivo que, sem cair no panegírico, honra a biografada e lhe faz a justiça devida. As elites (se as houvesse) deste país (se fosse digno) teriam razões para agradecer às duas.