Sim, sempre foi assim, e já todos sabíamos. Mas uma coisa é ter sido sempre assim, e todos sabermos, e outra coisa é sermos confrontados com as imagens, com os factos, como na reportagem do Observador sobre as eleições dos delegados da concelhia de Lisboa para a assembleia distrital do PSD. O trabalho de Vítor Matos, Pedro J. Castro e Miguel Pinheiro é, sem favor, um dos documentos mais elucidativos deste regime. Pela primeira vez, pudemos assistir à logística, às manobras, aos embarques e aos desembarques, que estão na raiz da vida política. Foi o PSD, como podia ter sido o PCP, o BE, o PS ou o CDS.

Para um historiador, tudo isto tem algo de arqueológico: tirando as carrinhas, era assim no século XIX. Ramalho Ortigão descreveu o sistema dos “influentes” e dos “caciques”, e José Malhoa pintou esse mundo em “A compra do voto” (1904). Na era do vídeo e do on-line, o velho “caciquismo” e o correlativo “voto de cabresto” estão vivos e recomendam-se: tal como há cem anos, uns quantos políticos profissionais, instalados em lugares públicos, usam o Estado para alargar clientelas, que depois mobilizam para votar.

Porque é assim? Há cem anos, até no Partido Social Democrata alemão, como demonstrou Robert Michels, vigorava a “lei de ferro da oligarquia” (em qualquer organização, por mais democrática, uma elite especializada acaba sempre por impor-se à maioria). O que é então característico do actual caso português? Talvez o papel do Estado na emergência e no funcionamento da oligarquia partidária. Os partidos agora existentes foram construídos de cima para baixo, sem excepção. Foram os recursos logísticos e legais do Estado, postos ao seu dispor pelo MFA em 1974, que fizeram e mantiveram o que são hoje o BE, o PCP, o PS, o PSD e o CDS. Quase todos eles começaram com sedes oferecidas pelo Estado, e todos vivem agora do financiamento público. Por isso, o número de militantes dos partidos em relação aos votos foi sempre muito baixo em Portugal, ao contrário dos países do norte da Europa.

Na eleição de Lisboa do PSD, votaram apenas 40% dos militantes: a mobilização caciqueira depende da desmobilização da maioria. A retórica anti-partidos, que se ouve desde o século XIX, ajuda os cidadãos a desinteressarem-se mantendo uma boa consciência. Fica a velha dúvida: os cidadãos não querem saber de política porque a política é assim, ou a política é assim porque os cidadãos não querem saber de política?

É nesse contexto que “todos já sabemos” e que “nada nos espanta”. Mas não nos devia inquietar? Ao contrário de outros regimes, a democracia de 1976 tem um eleitorado amplo e as suas eleições são limpas. Mas um Estado capturado por facções de políticos profissionais continua a ser o meio através do qual são feitas as carreiras na vida pública. Isso quer dizer que elegemos representantes cujos primeiros compromissos não são com os cidadãos, mas com os caciques profissionais dos seus partidos. Vista de baixo, a democracia não é participação de todos, mas a organização de alguns.

Ficaria talvez aqui bem um apelo à mobilização cívica. Mas o quadro institucional foi elaborado para favorecer os partidos e, dentro dos partidos, as direcções partidárias. Por alguma razão, os partidos parlamentares são os mesmos desde 1975 (incluindo o BE, sucessor da UDP e da LCI). Tudo isto dá ao sistema político uma grande estabilidade, mas à custa de uma enorme rigidez. Quando o regime tiver mesmo de mudar, acabará por cair, como aconteceu com outros regimes em 1910, 1926 e 1974. O regime é isto — os “Gonçalves” de todos os partidos e as suas carrinhas –, e quando não for isto, será outro regime.

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