Há uns anos li na Vogue um texto sobre Rory Kennedy, a filha mais nova de Ethel e Robert Kennedy, a propósito da realização do documentário Ethel, com o ponto de vista da sua mãe dos eventos que viveu e presenciou. Ou mais ou menos; vi o filme há dias e o ponto de vista é só da senhora de RFK. Às tantas, sobre a sua educação no meio de 11 irmãos, dizia Rory (tradução minha) ‘Eu tento educar cada um dos meus filhos [tem 3] como se fosse o décimo primeiro. Penso que ignorá-los e dar-lhes espaço para fazerem as suas coisas é uma boa abordagem’.

Esta opinião volta-me de tempos a tempos. Sucede sempre que leio aquelas intermináveis listas de conselhos para pais – escritas, estou convencida, por malfeitores com desígnios que ainda não desvendei – que nos informam o guião infalível para criarmos filhos bons alunos a matemática, filosofia, astrofísica e grego antigo, com capacidades de liderança, sociáveis, não influenciáveis pelos seus pares, enfim, perfeitos e destinados a ocuparem os mais altos cargos de cada nação.

Bom, quanto à educação dos filhos – como no resto – não vejo que os papeis tradicionais na família ganhem muito em permanecer imutáveis. Evidentemente que crianças precisam de figuras de autoridade, mas a aura de autoridade suprema onde antes se envolviam os pais, seres omniscientes e inquestionáveis que nunca se enganavam nas suas decisões, não me atrai. Menos ainda simpatizo com a ideia tradicional da mãe prestadora de cuidados e figura de afetos e o pai mais distante e autoridade máxima familiar.

A opção ‘cooperativa onde todos mandam o mesmo’, como se uma criança tivesse igual nível de discernimento que um adulto (ainda que com adultos que julgam ter o discernimento de uma criança todas as certezas se esboroem), também não me cativa. No entanto, regra geral, compro: a cumplicidade crescente entre pais e filhos, a valorização do afeto e o uso comedido da autoridade e da disciplina, as novas teorias pedagógicas. (Até porque têm tendência a ser numerosas e muito diferentes entre si, o que permite a escolha pela que nos está mais próxima sentindo-nos sempre portadores de fundamentação imbatível.)

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Há, contudo, limites para a mãe e o pai bem intencionados mas não obsessivos compulsivos. Além da alimentação infantil – que se tornou algo científico, rivalizando com a alimentação liofilizada dos astronautas – temos toda uma panóplia de sugestões para estimular as pobres crianças e ajudá-las a aproveitarem o seu potencial. As crianças têm de ouvir música clássica – sobretudo Mozart, talvez pelo seu proverbial excesso de notas – para desenvolver partes do cérebro que permanecerão selvagens se não forem apresentadas à Flauta Mágica. Devemos por os pequenos seres a participarem nas atividades domésticas incentivando-os a dizerem os nomes dos objetos ou a contar quantos pratos arrumam. E sabe os benefícios de aprender mandarim logo no primeiro ano de escolaridade? Ponderou o brilharete que o rebento fará nas suas festas de aniversário se começar já a aprender violino (mesmo se for duro de ouvido)? Comprou todos os livros do Brazelton, onde o famoso pediatra explica quais os passos que os pais devem seguir e que levam sempre – porque as crianças são todas iguais e reagem da mesma forma – a comportamentos chapa cinco dos miúdos e à perfeição familiar?

É quando se chega a esta grau de artificialidade, quando a relação com o filho já não é para se fruir e gozar, mas sim para estimular determinada qualidade da criança – sem a qual o seu futuro de multimilionário soçobrará – que eu começo a valorizar os métodos da parcialmente disfuncional família Kennedy.

As crianças estimulam todo o tipo de capacidades no jardim de infância, aprendem imenso e intensamente na escola, será pedir muito que fora desses tempos as deixem descansar, brincar, não fazer nada, ver televisão, desenhar? Aproveitarem ou desaproveitarem o tempo como entenderem e sem estarem continuamente sob supervisão de um adulto a avaliar a qualidade da atividade? E se afinal chegará a CEO ou se ficará por um emprego menial? Por que não há-de uma criança estar só e ter brincadeiras secretas e inconfessáveis aos adultos? (Para os utilitaristas mais empedernidos: talvez seja uma boa maneira de estimular a imaginação e criatividade da criança, bem como oportunidade para testar os próprios recursos.)

Parece-me mais ou menos claro que é deixarmos as crianças serem estimuladas no jardim de infância e na escola e em família propiciarmos um ambiente onde as capacidades possam naturalmente florescer. De preferência de acordo com os reais hábitos dos pais, que os pequenos diabretes são peritos em perceber o que é postiço. Por exemplo: ter livros em casa e ver os pais ler é a melhor forma de educar filhos leitores. E a leitura de ficção é uma boa forma de estimular uma capacidade muito útil (e não profusamente distribuída): a empatia.