O ministro das Finanças apresentou esta semana a proposta de reforma do modelo de supervisão financeira, elaborada pelo grupo de trabalho liderado por Carlos Tavares, ex-presidente da Comissão de Mercados de Valores Mobiliários. As primeiras reacções à proposta concentraram as suas críticas e alertas às ameaças que contém à independência dos supervisores e reguladores, com especial relevo para o Banco de Portugal. Receia-se nomeadamente a governamentalização das funções de supervisão e das decisões de intervenção no sistema financeiro. É provável que assim seja mas sem que se altere os resultados que se obtiveram com o modelo actualmente em vigor.

Em termos gerais, a equipa liderada por Carlos Tavares propõe manter o actual sistema tripartido de supervisão: Banco de Portugal com as instituições de crédito, Comissão de Mercados de Valores Mobiliários com os instrumentos financeiros e a Autoridade de Supervisão dos Seguros e Fundos de Pensões com o sector segurador. A grande novidade é a criação de duas novas entidades, uma delas com áreas de actuação que actualmente pertencem ao Banco de Portugal e outra que teria como função mais importante permitir que o Governo tivesse a palavra final relativamente a intervenções no sistema financeiro com impacto nas contas públicas.

Na proposta, em discussão pública até dia 20 de Outubro, está consagrada a criação de um supervisor transversal, o Conselho de Supervisão e Estabilidade Financeira – que institucionaliza o actual Conselho Nacional de Supervisores Financeiros. Este novo órgão goza de estatuto de independência e autonomia financeira e de gestão, garantido pelo modelo de nomeação da sua administração executiva e por estarem ali representados os três supervisores. No quadro do que se propõe, este órgão passará a ser a autoridade macroprudencial e a autoridade nacional de resolução, cabendo-lhe, neste domínio, a função de decidir e executar as medidas de resolução. Qualquer uma destas funções está agora no Banco de Portugal, ainda que a resolução esteja autonomizada. Além disso, este Conselho assegura “a troca institucionalizada de informação”.

É ainda criado o Conselho Superior de Política Financeira presidido pelo Ministro das Finanças cujo objectivo é garantir a “necessária articulação e a cooperação entre todas as entidades a quem cabe a missão de assegurar a estabilidade financeira do país (Governo, Banco Central e Supervisores)”, como se pode ler na proposta. Este organismo, que funcionaria junto do Conselho transversal de supervisão, tem obrigatoriamente de ser ouvido num conjunto de decisões de supervisão, como por exemplo as que tenham impacto na conta de exploração dos bancos. Além disso, os representantes do Ministério das Finanças ficam com poder de veto nas decisões que tenham efeitos nas finanças públicas. Ou seja, as deliberações com efeitos nas contas públicas não podem ser adoptadas quando exista oposição das Finanças.

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A principal critica a esta mudança de arquitectura tem vindo do PSD, que considera, nas palavras de Pedro Passos Coelho, “uma perversão” criar um conselho de supervisores onde está o Governo, defendendo que Portugal caminha no sentido contrário das tendências europeias de reforço da independência dos supervisores e reguladores. Como pudemos ver pelo resumo da proposta, o Governo está presente no Conselho Superior, com poder de veto em intervenções que tenham impacto nas finanças públicas, mas também com poder de se pronunciar sobre uma vasta gama de decisões – por exemplo, decisões com impacto na conta de exploração dos bancos.

Parece claro que a proposta, que o Governo já aceitou, limita os poderes do Banco de Portugal enquanto autoridade de supervisão, o que não significa, necessariamente, que o torne menos independente. Terá menos poder absoluto, no sentido de poder tomar decisões sozinho sem dar satisfações a ninguém.

Parece igualmente claro que o poder de intervenção do Governo aumenta. A questão que merece reflexão é: esse poder aumenta de facto ou é apenas institucionalizado, tornando-se, no limite, mais transparente?

Um dos exercícios que vale a pena fazer quando se olha para esta proposta é pensá-la à luz do que poderia ter acontecido ao BES e ao Banif se esta arquitectura estivesse na altura em vigor.

E à luz do que se sabe hoje parece que pouco ou nada de diferente teria acontecido. Apenas num aspecto temos a garantia de que seria diferente: o Banco de Portugal teria partilhado informação com os outros supervisores, designadamente com a CMVM e a Autoridade de Supervisão dos seguros. Mas nada nos garante que o que pode ter acontecido por omissão ou falta de informação não tivesse ocorrido da mesma forma, desta vez por decisão, por escolha activa dos supervisores. E essa pode ser a grande vantagem deste modelo porque inviabiliza que as partes digam que não actuaram porque não sabiam, escudando-se no Banco de Portugal.

A pouco e pouco, o caso BES suscita mais perguntas do que respostas. Por exemplo, como é que a CMVM não actuou de forma mais activa através dos fundos de investimento no caso do papel comercial e como é que, com essa informação que tinha, não sabia o estado em que estava o BES e viabilizou o aumento de capital? E como é que o Banco de Portugal com o que já sabia pelo menos em Novembro de 2013 – há quem garanta que já sabia o suficiente no Verão de 2013 – deixou Ricardo Salgado à frente do BES e não forçou uma capitalização com dinheiro público numa altura em que isso ainda era possível? Ou ainda, porque é que o Governo de Pedro Passos Coelho, quando regulamenta a capitalização dos bancos com dinheiro da troika não obriga todos os bancos sem excepção a usarem esses recursos, permitindo que o BES actue em concorrência desleal dizendo que não precisa desse capital?

Sim, cada uma das partes tem explicações para o que não fez. A CMVM diz que não podia fazer mais do que fez, como diz o Banco de Portugal e o Governo. Não se podia impedir a emissão de papel comercial, não se podia tirar Ricardo Salgado do banco, não se conseguia impedir os aumentos de capital, não se conseguia obrigar o BES a usar o dinheiro da troika. Estes são genericamente os argumentos das partes, nalguns casos com uns a desculparem-se com o que os outros deveriam ter feito e não fizeram.

Se o modelo proposto por Carlos Tavares estivesse em vigor na altura teria acontecido exactamente o mesmo. Os condicionalismos de cada um estavam lá bem presentes e continuariam a ditar a “não decisão” no tempo em que ainda conseguiam controlar o desenrolar dos acontecimentos.

Imaginemos que o Conselho de Supervisão e Estabilidade Financeira existia e que se debatia ali o “buraco” de 1200 milhões de euros no BES descoberto em Novembro. Como actuar? Levando em conta o que tem sido o padrão de “não decisão” nesta matéria bancária, e que remonta ao BPN, o mais certo é que andassem a arrastar os pés com papéis para uns e para outros sem tomarem nenhuma decisão, basicamente por medo dos seus efeitos. (É preciso lembrar que em Novembro de 2013 Ricardo Salgado era ainda visto como o Dono Disto Tudo).

Mas vamos admitir que os supervisores e reguladores deste conselho transversal deliberavam por uma intervenção no BES. A deliberação, no quadro do que está proposto neste novo modelo, tinha se ser submetida ao Conselho Superior de Política Financeira presidido pelo ministro das Finanças. E se a proposta dos supervisores fosse a de uma capitalização com dinheiros públicos, o ministro das Finanças teria poder de veto. O que faria um ministro das Finanças em Novembro de 2013, a meses de poder mostrar uma “saída limpa” da troika? Ou em Agosto de 2014, depois da “saída limpa” e a poucos meses de eleições? Tudo teria acontecido como aconteceu: adiar a decisão em Novembro e forçar a resolução como ela foi feita – em modelo “faz de conta que não há custos para os contribuintes”. Fosse qual fosse o Governo, do PS ou do PSD.

Uma das grandes vantagens do modelo proposto por Carlos Tavares e adoptado pelo Governo é a de tornar o processo de decisão mais transparente: saberemos quem decidiu, sem que ninguém se possa desculpar com o vizinho do lado. Mas há um problema que não há modelo que resolva, o da tendência que temos para ir adiando decisões quando os problemas são difíceis. Foi assim com o BPN, assim foi com o BES e o Banif. E assim será com outros casos que possam acontecer, com esta ou outra qualquer arquitectura de supervisão, mais ou menos formalmente independente dos governos.