Na noite do passado domingo, quando ouvi a declaração de Jean-Luc Mélenchon, não fiquei surpreendido. O líder da ultra-esquerda francesa – o Bloco de Esquerda lá deles –, ufano do seu notável resultado eleitoral, não foi capaz de dizer o óbvio: na segunda volta, entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen, há que escolher, ou seja, há que votar Macron. Preferiu dizer que não tinha mandato para dar uma indicação de voto e que iria consultar a sua base de apoio. Já o fez, pedindo que escolhessem entre três alternativas: o voto em Macron, a abstenção e o voto nulo. Não se atreveu a colocar entre as opções o voto directo em Marine Le Pen, mas não teve vergonha de dar aos seus apoiantes a escolher opções que representam uma forma indirecta de apoio (a abstenção e o voto nulo).

Ao contrário de alguns comentadores que ficaram boquiabertos e de outros que consideraram mesmo que Mélenchon estava a cometer um suicídio político, eu, repito, não fiquei surpreendido. Mesmo nada surpreendido. Por vários motivos fáceis de explicar.

Primeiro, conheço bem a história do radicalismo de esquerda e sei que, nela, a regra não é a existência de “geringonças”, antes a feroz oposição à esquerda moderada, aos socialistas e aos sociais-democratas, a quem muitas vezes chamaram mesmo “social-fascistas”. Este termo tem de resto uma história sombria, pois está ligado à forma como, na Alemanha da República de Weimar, o partido comunista (o KPD) tratou os “traidores” e “reformistas” do partido social-democrata (o SPD), encarniçando-se de tal forma contra eles que criou um cisma que abriu caminho à ascensão dos nazis ao poder. Para eles pouco distinguia “fascistas” de “social-fascistas”. Hoje, mesmo medidas todas as distâncias históricas, a verdade para Mélechon, como para o nosso PCP e o nosso Bloco, é que mesmo tendo uma Marine Le Pen na segunda volta, todas as desculpas parecem boas para não fazer o essencial, isto é, para admitir que só há uma maneira de derrotar a extrema-direita, e que isso só acontecerá votando em Macron.

Para o endoutrinador-mor, o novel conselheiro de Estado Francisco Louçã, isso seria uma “precipitação”. Num texto sintomaticamente pontuado pela evocação do hino da Mocidade Portuguesa (“é mesmo preciso um “som tremendo” e um “clamor sem fim” para que ninguém ouça nada” e corra a votar em Macron…), ei-lo que até recorre a alegorias salazaristas para criticar os que se atrevem a sugerir a “entronização” do candidato em que é preciso votar para derrotar a líder da extrema-direita.

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Querem o vota da “esquerda”? Dêem garantias “à esquerda”, sugere Louçã. E se não derem, como certamente não darão se pensarmos nas “garantias” anti-União Europeia e anti-liberalismo económico que ele deseja? Talvez sair à rua com “um punhado de militantes”, como Louçã recorda que já fez. Nunca, mas mesmo nunca, nos devemos é precipitar a votar Macron “cantando e rindo, levados, levados, sim”. Afinal, como se escrevia no comunicado do Bloco sobre as eleições de domingo, estamos perante um “ex-banqueiro”, “um híbrido gaullista-socialista cuja recente passagem pelo ministério da economia revelou a agressividade do seu programa liberalizador e anti-laboral”.

Este tipo de discurso não tem a brutalidade – afinal estamos em 2017 – dos discursos sectários dos comunistas alemães em 1932 e 1933, mas a filiação ideológica é a mesma – e por ser a mesma não surpreende que os repórteres que andam no terreno a falar com as bases da “França Insubmissa” falem do “exército de abstencionistas” de Mélenchon. De facto que outra coisa se podia esperar quando se fez toda uma campanha a acusar Macron de querer pôr os trabalhadores a “cuspirem sangue”?

Mais: quando falou na noite das eleições Mélenchon também sabia, porque é isso que dizem as sondagens, que quase metade dos seus apoiantes (mais exactamente 42%, de acordo com o Ifop) não tem intenção de votar na segunda volta das presidenciais. Indo mais ao detalhe até descobrimos que, entre os que têm intenção de ir votar, muitos consideram fazê-lo em Marine Le Pen, e não em Macron. Ou seja, Mélenchon não fez mais do que reflectir o sentimento dos apoiantes cujo espírito inflamou durante a campanha.

Mesmo assim não será estranho que uma parte dos seus eleitores considere votar Le Pen? Longe disso. Boa parte da base eleitoral da “França Insubmissa” de Mélenchon é sociologicamente a mesma base eleitoral de “um futuro em comum”, o movimento de Marine Le Pen. É a França zangada com a globalização, a França das regiões desindustrializadas cujo eleitorado tem vindo a transitar directamente da esquerda radical e comunista para a Frente Nacional, a França que rejeita a União Europeia e defende o proteccionismo e a prioridade nacional. Mais: as classes mais baixas, as “classes trabalhadoras” da linguagem marxista, votam – aliás já votaram – mais depressa Le Pen do que Mélenchon. Duvidam? Vejam o episódio de hoje, vejam como Marine Le Pen foi recebida numa fábrica em greve e escutem o seu discurso.

É muito instrutivo e é neste ponto que chegamos ao que verdadeiramente incomoda Louçã e todos os que, como ele, não são capazes de apelar já ao voto em Macron, uma teimosia inquietante até porque duas semanas é pouco tempo para desfazer a sementeira de ódio contra “o banqueiro” que foi semeada e regada ao longo dos últimos meses. E esse ponto que incomoda mesmo Louçã é o da enorme coincidência programática entre as plataformas eleitorais da extrema-esquerda e da extrema-direita francesas.

Já a campanha de Marine Le Pen não tem qualquer problema em sublinhar essa proximidade, pelo que está a distribuir por toda a França um pequeno panfleto onde se apela directamente ao voto dos “insubmissos” e se destacam os principais pontos de convergência entre Mélenchon e a Frente Nacional. É que onde um fala de “proteccionismo solidário”, a outra fala de “proteccionismo inteligente”. Onde um propõe a reforma aos 60 anos, a outra propõe a reforma aos… 60 anos. Se um quer sair da NATO, de Schengen e dos acordos de livre-comércio, a outra também. E por aí adiante. O panfleto é tão surpreendente que o reproduzo abaixo:

Na verdade talvez nem seja tão surpreendente assim. A visão do mundo iliberal e fechada sobre a França de Marine Le Pen só podia ter muitos pontos em comum com o iliberalismo e o nacionalismo económico de Mélenchon. E mesmo sabendo que divergem profundamente no que diz respeito às políticas de segurança e imigração, a verdade é que tanto um como outro se podiam referir a Macron como “um político postiço cuja qualificação para ser Presidente é ter ganho uns milhões em piratarias financeiras”. Provavelmente já ambos o fizeram, não sei, mas sei que o autor desta última frase é Francisco Louçã. Fica-lhe bem.

Quanto ao resto, eu compreendo. É grande a frustração da esquerda radical por não ver na segunda volta das presidenciais o candidato que gosta de se vestir à Mao Tse-Tung. Marisa Matias até achou que ele já lá estava, quando se juntou ao rabo de cavalo do Podemos num comício de Mélenchon – um Podemos que também não foi capaz de dizer imediatamente que, na segunda volta, era necessário votar Macron, usando o argumento de que “não são franceses”.

Neste país anestesiado pela geringonça e que tolera todos os dislates às meninas do Bloco, é útil recordar que as raízes e o coração do partido que se senta mais à esquerda no hemiciclo estão onde sempre estiveram. Que não é apenas Louçã a procurar justificar o injustificável (no site de informação do Bloco Jorge Costa e Nelson Peralta fazem o mesmo), pois o esquerdismo infantil é algo que mesmo todas as lições da história não apaga. Quando menos se espera, ei-lo que reaparece, como sucedeu agora com esta incapacidade de dizer o óbvio sobre em quem votar na segunda volta das eleições francesas. Sendo que até reaparece quando nada o faz prever, como sucedeu na cerimónia comemorativa do 25 de Abril na Assembleia, onde Mário Soares foi recordado pelo PS, pelo PSD, pelo CDS, pelo Presidente da AR e pelo Presidente da República, mas “esquecido” pelo Bloco e pelo PCP, como bem notou Henrique Monteiro.

Às vezes parecemos distraídos, mas estes partidos nunca deixaram de desprezar as democracias liberais do Ocidente, nunca aceitaram a Europa do euro, nunca toleraram a globalização e o livre-comércio. Em tudo isso pisam o mesmo terreno da extrema-direita lepenista. Poucas vezes foi mais verdade o velho adágio de que os extremos tocam-se — é que se tocam mesmo.