A crer no ruído noticioso e comentarista, é a Grécia. Percebe-se porquê: é o caso que mais directamente podemos relacionar com o nosso. Mas preparemo-nos para a possibilidade de, daqui a uns anos, os historiadores darem menos importância à Grécia do que ao que se está a passar na Ucrânia. Arriscamo-nos então a parecer muito distraídos. Enquanto estávamos a olhar para a Grécia, perdemos a Ucrânia. E com a Ucrânia, podemos perder muito mais do que imaginamos.

Neste momento, é preciso ser muito optimista para não usar o pretérito ao falar  da Ucrânia: tinha 46 milhões de habitantes e era o Estado com maior superfície na Europa. A opção pró-russa do presidente Yanukovytch em 2013 e a sublevação pró-europeia em Kiev em Fevereiro de 2014 dividiram o país e precipitaram a invasão russa. A situação é agora reminiscente da Jugoslávia na década de 1990. A UE não sabe o que fazer: conformou-se com a anexação da Crimeia, hesita em continuar as sanções à Rússia, arranja todos os dias mais um bom argumento para não armar o governo de Kiev, e aposta tudo em mais um acordo.

Há várias coisas, para além da nossa obsessão grega, a impedir-nos de apreender a relevância do que se passa na Ucrânia. Uma é a percepção da Ucrânia como um caso exótico. Há quem nem a considere um verdadeiro país, por causa da sua diversidade interna. No entanto, todos os grande Estados europeus são o resultado de “unificações” mais ou menos recentes de elementos diversos e até opostos: a Espanha ou o Reino Unido, por exemplo, mas também a Itália. A diferença é que a Itália, a Espanha ou o Reino Unido não têm, nas suas fronteiras, uma grande potência militar a animar e a armar rebeliões e a injectar tropas nos seus territórios. Se a Rússia fosse mais perto, talvez a Espanha, no caso da Catalunha, não estivesse apenas a discutir um referendo.

Chegamos aqui à questão da Rússia de Putin, e do que pode representar para o Ocidente. A II Guerra Mundial e depois a Guerra Fria convenceram-nos de que os grandes conflitos têm necessariamente raízes doutrinárias. Sem o marxismo-leninismo, concluímos que a Rússia não nos deveria preocupar. Acontece que nem sempre foram precisas divergências ideológicas para haver rivalidades internacionais e guerras (a I Guerra Mundial é um exemplo).  A Rússia de Putin é uma autocracia pessoal a que a retracção soviética deu uma causa (a recuperação do império) e a percepção do declínio e da divisão ocidentais deu uma oportunidade. Putin pretende manifestamente abalar a NATO e a UE, em que vê limites à sua influência na Europa. Podemos diagnosticar muitas debilidades à Rússia, mas Angela Merkel, ao recusar qualquer solução militar, reconheceu-lhe esta força decisiva: a Rússia, na Europa de leste, empenhar-se-á sempre mais do que os ocidentais. É uma admissão tremenda. Porque se a Ucrânia tombar por causa da indisponibilidade ocidental para sustentar a sua opção europeísta, o que passará pela cabeça de Putin em relação aos Estados bálticos, também com minorias russas, mas já membros da UE?

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A integração europeia pode estar muito mais em causa na Ucrânia do que na Grécia. Na Grécia, a questão é a da irreversibilidade do euro; nos países bálticos, depois de um abandono da Ucrânia, a questão seria a da integridade da UE perante uma ameaça externa. A UE pode existir sem moeda única, como já existiu, mas não sem a determinação de se defender.

Neste ponto, não é preciso invocar o cenário de uma “terceira guerra mundial”. As guerras totais entre grandes potências são historicamente mais raras do que sugere a história do século XX. Mas uma nova “guerra fria” na Europa oriental terá provavelmente consequências sociais e económicas tão grandes ou maiores do que a crise grega da integração monetária.

Há anos que os orçamentos da defesa europeus são sistematicamente restringidos e reduzidos a salários e pensões, contra a corrente do resto do mundo, a começar pela Rússia (curiosamente, a Grécia é um dos poucos países europeus que insiste numa despesa militar elevada, devido à sua rivalidade com a Turquia). O Estado social europeu é, em grande medida, o resultado da prosperidade da economia de mercado, mas também da diminuição das facturas militares, graças à protecção americana e ao colapso da União Soviética. Foi assim que, desde o século XIX, passámos na Europa de Estados cuja despesa era sobretudo militar, para Estados cuja despesa é sobretudo “social”. E a despesa militar americana facilitou essa transição. Mas se a pressão da Rússia aumentar, o investimento europeu na defesa terá de subir, até porque os EUA não estarão dispostos a continuar a pagar a conta principal.

Existe, claro, a possibilidade de uma subordinação à Rússia. Mas o modo de vida ocidental e a sua prosperidade dependeram, desde 1945, da segurança e da autonomia de que a Europa ocidental beneficiou em aliança com os EUA. O que estaríamos a pôr em risco ao sacrificar essa segurança e essa autonomia? Provavelmente, tudo. Ao olharem para a Grécia, não se esqueçam da Ucrânia.