A recente publicação de uma proposta de alteração da Lei de Bases da Saúde, por António Arnaut e João Semedo, num opúsculo a que entenderam chamar “Salvar o SNS”, é um contributo que merece ser comentado. O valor dos autores, de quem tenho muitas vezes discordado e de quem estou longe na maioria das opções políticas, obriga a que lhes seja dada uma palavra de resposta que mais não é do que a confirmação da leitura atenta do texto e o reconhecimento por mais este contributo de cidadania. Saúde-se a sua intenção de combaterem o tremendo bocejo com que grande parte dos políticos tende a olhar para as questões da saúde.

O título do livro, panfletário e apelativo, não corresponde ao conteúdo. A proposta de lei inserta não é um conjunto de medidas legislativas para salvar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de coisa nenhuma, não responde às ameaças reais, nem é um caminho para a reforma necessária do nosso SNS. O que não quer dizer que no conjunto de Bases propostas não haja alguns pressupostos e muitas alíneas que deverão consignar um apoio alargado a todos os setores políticos. Mas há sugestões e ideias que devem ser rebatidas e outras tantas que carecem de ser melhoradas. Esta proposta é uma pedra, ainda por lapidar, para um dos consensos alargados de que o País precisa.

Sejamos claros. Salvar o direito à proteção da saúde não se consegue ao apenas “salvar o SNS”. Salvar o SNS não pode ser um exercício do reforço da sua quase exclusividade na prestação de cuidados. Bem pelo contrário, o aumento da quota exclusiva de prestação de cuidados pelas instituições públicas, ao diminuir a esfera de intervenção dos setores social e privado, é a receita para a mais rápida falência de um serviço pelo qual os Portugueses não podem pagar mais impostos. No entanto, tendo o SNS chegado ao ponto a que chegou, só com investimentos bem ponderados, mas muito elevados, será possível recuperar os níveis de eficácia e eficiência que tornarão o SNS sustentável por mais umas décadas.

Arnaut continua a pensar como se fosse ministro de um Governo de Clement Atlee, o nosso Anthony Bevan, o tal “pai”. Contudo, ao ler o seu introito, “Que não se perca a semente”, fica-nos a ideia de estarmos a ouvir o “avô”, com tudo o que de meritório tem este grau de parentalidade remota, confrontado com um “neto” que inexoravelmente seguiu um caminho que já não se descreve, nem inscreve, na lógica socialista do “welfare state” do após segunda guerra mundial. Os tempos mudaram. Temos uma população mais longeva com maior proporção de idosos mais móvel, mais exigente, mais educada. Nada a compara, felizmente, com as gentes de uma Europa devastada, com menos uns milhões de habitantes e sem estruturas funcionantes, que necessitava de políticas de proteção social que só o Estado podia providenciar. Eram Estados falidos, sem outros recursos imediatos para lá da ajuda de uma América vencedora e já só preocupada com a consolidação de um tampão à expansão do comunismo soviético a quem tinham cedido demasiado. Arnaut não aparenta perceber a realidade da mudança tal como ela é. Assume que propõe uma nova Lei de Bases porque considera que a Lei 48/90, a que está em vigor, procurou “subverter completamente a filosofia constitucional e humanista que motivou a criação do SNS”, não porque a Lei de Bases precise de evoluir para responder às necessidades de uma população mais carente, potencialmente menos saudável e com necessidades cada vez mais dispendiosas. Os três exemplos que dá, para essa “subversão”, são limitados e pouco felizes, apenas se compreendendo pela ideologia marxista que assola a parte do PS que não é, nem quer ser, social-democrata. Arnaut parece não compreender o que é um sistema de saúde moderno, à luz da definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), ignora as virtudes da concorrência, como motor da melhoria contínua da qualidade, e dá sinais de não aceitar que os seguros de saúde sejam um contributo legítimo e imprescindível para a cobertura universal e geral de proteção da saúde. A verdade é que, com a Lei de Bases que temos, com todas as suas imperfeições, os indicadores de saúde dos Portugueses têm continuadamente melhorado desde 1990.

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Semedo é mais contundente. Com a elegância e capacidade de exposição que todos lhe conhecemos, assenta a sua tese numa falácia. “Erros Políticos e opções ideológicas privatizadoras conduziram à crise do SNS”, no entender do autor. Concordamos que houve erros, muitos, mas nunca aconteceram privatizações e o SNS ainda é só público, por definição. Semedo identifica e descreve bem alguns dos problemas, mas a sua ficção etiológica está errada. A sua defesa da saúde pública, afirmando que a “prevenção da doença e a promoção da saúde, à exceção dos programas de vacinação, são a grande aposta perdida”, porventura “o maior fracasso da política de saúde” está muito próxima da realidade vivida. Igualmente, o alerta para o sub-financiamento crónico e a constatação de que tem havido “incapacidade de reformar o modelo assistencial do SNS, adaptando-o às mudanças entretanto verificadas”, também não sofrem contestação. Mas, entre outros erros de análise, aparece a afirmação, reiterada pela esquerda unida, de que o Governo de Passos Coelho “aumentou brutalmente”, diz o Dr. Semedo, as taxas moderadoras. Esquece-se, como é habitual, de mencionar que foi o Governo de Passos Coelho quem aumentou, numa dimensão nunca antes vista, o número de isentos de pagamento de qualquer taxa e as alargou, pela primeira vez, a todos os menores de 18 anos, quando antes só eram isentos os menores de 12 anos. Todavia, tenho de reconhecer que muito do que Semedo escreve é verdadeiro e merecedor de concordância.

A maioria das novas Bases da Saúde não merece a minha reprovação. Por exemplo, a colocação da saúde em todas as políticas públicas, a menção alargada a todas as profissões de saúde, a valorização do papel da Medicina e dos seus executores, a defesa sanitária, o controlo das terapêuticas não convencionais, merecem o meu aplauso. Não se aceita, sem condenar ao desemprego uma parte substancial dos médicos que temos de formar, que o exercício autónomo da profissão médica só possa ser feito após formação especializada. Pressente-se uma intenção de limitar as transferências de competências para as Autarquias, ao omitir recursos humanos. Faltam propostas sobre dispositivos médicos e outras tecnologias de saúde, cuja avaliação deveria ser prevista nas Bases, não há menção explícita ao valor da evidência científica e à necessidade de se promoverem escolhas racionais, embora o texto mencione eficácia e eficiência. Também não se fala do direito à vida e a proposta é curta quanto ao direito de escolha de prestadores. Faltam referências mais claras ao controlo de qualidade e à regulação da saúde. A saúde mental mereceria destaque. Nada que não possa ser melhorado.

No entanto, há normas que são um retrocesso e nada farão para “salvar o SNS”. Desde logo, a visão limitada de “serviço”, não de “sistema”, como instrumento para o cumprimento do direito de proteção da saúde. Vai ao arrepio das noções mais modernas de saúde pública, das recomendações da OMS e cria entraves ao acesso universal. As sociais-democratas Alemanha e Holanda ou a socialista França têm, desde há longos anos, um sistema de seguros públicos e privados, coexistente e sinérgico, alternativo em alguns casos. No caso alemão, desde Bismarck. Ora, esta proposta de lei cristaliza o financiamento do SNS e do direito à proteção de saúde num modelo que já está falido e não consegue deixar de ser sub-financiado.

Várias vezes repetem uma gratuitidade absoluta que nem a Constituição prevê, que não existe nem nunca existiu. Atrevo-me mesmo a dizer que a noção de gratuitidade que os autores da proposta defendem é incompatível com a ideia de um SNS geral, mesmo que a “generalidade” se refira apenas à utilização de abordagens de eficácia bem demonstrada.

É aqui que está o busílis de tudo. A proposta de lei apresentada não encara a reforma do modelo de financiamento, não explora a possibilidade de um seguro público alternativo aos seguros privados e não se liberta de dogmas ideológicos. Ao tornar o SNS no único prestador de cuidados e garantia quase exclusiva do direito à proteção da saúde estamos a inviabilizar o seu caráter universal e geral. Simplesmente, um SNS prestador único, enquanto conjunto de instituições exclusivamente públicas, nunca terá capacidade, nem poderá comportar financeiramente esse desígnio.

A Base sobre taxas reguladoras é um desastre. Não devem deixar de existir e nada deve impor que não possam existir pagamentos por atos, em função da condição económica e social, como diz a Constituição. Pior é a previsão de que possa haver prescrições ou requisições que não sejam feitas “por médico ou profissional de saúde competente para o efeito” – deveria ser habilitado, porque há incompetentes em todo o lado –e, por isso, passíveis de cobrança de taxa. Foi lapso. Não acredito que os autores tenham imaginado a possibilidade de haver exames ou medicamentos prescritos por quem não o poderia fazer. Igualmente, não me revejo na gestão descentralizada e desconcentrada, tal como ela está plasmada na lei em vigor, com um conjunto de atribuições para as ARS que não deveriam existir. Entendo que as ARS deveriam estar apenas na lei orgânica e em decretos, mas não nas Bases. Cá está um erro de 1990 que poderá ser corrigido. Em boa verdade, todo o modelo de ARS merece ser completamente revisto. Este nível intermédio de burocratização tem mais defeitos do que virtudes, na forma em que existe e nas competências, largamente sobrepostas às de outras agências, que ainda detém.

O que não se poderá aceitar, numa visão alargada do que deve ser a proteção do acesso e, por essa via, da universalidade, são as limitações impostas aos seguros e a impossibilidade de haver concorrência público-privado, como consta no livro que aqui comento. Um seguro não pode ser obrigado a continuar tratamentos quando a cobertura contratada for insuficiente. Um seguro está abrangido por uma responsabilidade contratual e nunca se poderá exigir que o vínculo do contrato se estenda para lá do que foi antecipadamente pago pelo segurado. É também para isso que existe o SNS, de que não pode haver opt out, pago por todos nós e que tem como missão receber todos os que dele necessitem. Os seguros, como os autores defendem, são sempre e apenas complementares, pelo que não substituem o SNS quando ao Estado convém. Os limites dos privados devem ser claros. Suplementarão o que o Estado não puder prestar em tempo útil, por preços que, quando pagos pelo Estado, nunca deverão ser diferentes dos pagos às instituições públicas. O barato não é sempre o melhor. Compete ao Estado garantir o acesso dos beneficiários abrangidos a todos os prestadores, sociais ou privados, que estejam dispostos a aceitar os utentes. Pode haver delimitação de setores e até de áreas de intervenção ou de pessoal, mas nunca se deverá acantonar os prestadores privados num espaço em que não lhes seja permitir competir com o SNS.

O SNS precisa de competição e de ter um espaço de intervenção definido. Numas circunstâncias será um SNS geral, noutras não. O que não dispensa o Estado de garantir acesso universal. O SNS precisa de ser financiado adequadamente, modernizado estruturalmente, ser a referência na formação de profissionais, oferecer conforto e rapidez, procurar ser melhor do que os privados, e isso só se atinge quando há a “ameaça” da comparação. Quanto ao resto, como cidadão e funcionário do SNS há quase 35 anos, só me resta retribuir o agradecimento dos autores “aos leitores que queiram enviar as suas críticas e sugestões como contributo para o aperfeiçoamento da proposta que agora apresentamos”. Foi o que procurei fazer.