A seguir à pesada derrota frente ao Bayern na Baviera, Rui Vitória somou sete vitórias consecutivas, garantiu o acesso às meias da Taça da Liga com um empate na Vila das Aves mas bastou mais um desaire no Campeonato a abrir o ano civil de 2019 em Portimão para confirmar em definitivo o fim de linha na Luz após alguns jogos onde já era notória a contestação ao técnico. Depois de um encontro decidido por autogolos de Rúben Dias e Jardel e onde Jonas foi expulso, e com os encarnados na quarta posição a sete pontos do líder FC Porto e atrás de Sporting e Sp. Braga, houve mudança técnica comunicada então a prazo à CMVM, a 3 de janeiro.

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“A Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD informa, nos termos e para o efeito do disposto no artigo 248.º-A do Código dos Valores Mobiliários, que chegou a um princípio de acordo com o treinador Rui Carlos Pinho da Vitória para a rescisão do contrato de trabalho desportivo com efeitos imediatos (…) Informamos que a orientação da equipa principal do Sport Lisboa e Benfica será assegurada de imediato e provisoriamente pelo treinador Bruno Lage”, explicava a missiva. No dia seguinte, Bruno Lage deu o primeiro treino; três dias depois, venceu o Rio Ave por 4-2 na Luz após ter estado a perder por 2-0 na primeira parte. E enquanto se falava de José Mourinho e Jorge Jesus entre outros nomes para a sucessão a Rui Vitória, o então interino passou a principal. Até hoje.

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Com uma segunda volta quase perfeita, o Benfica conseguiu ainda sagrar-se campeão com dois pontos a mais do que o FC Porto, goleou depois o Sporting na Supertaça e chega ao início de 2020 com quatro pontos de avanço dos dragões, com quem perderam os único três pontos em 14 jogos. Mas houve mais mudanças na Luz entre vários recordes batidos pelo técnico, pelo ataque dos encarnados e por jogadores como Pizzi ou Rafa, além da maior venda de sempre de João Félix que se tornou exemplo paradigmático do sucesso na aposta no Seixal. Negativa mesmo foi a campanha europeia, com as águias a falharem a passagem aos oitavos da Liga dos Campeões. Tudo com Bruno Lage, o estudioso que vence com o que não vem nos livros e conquista jogadores a olhar para os homens.

Bruno Lage. O estudioso que vence com o que não vem nos livros e conquista jogadores a olhar para os homens

Do ruído da sucessão entre Mourinho e Jesus às duas renovações num ano

A saída de Rui Vitória ficou presa em novembro de 2017 por uma luz que Vieira ainda viu na madrugada após a goleada sofrida em Munique de que seria possível dar a volta mas acabou mesmo por avançar no início de janeiro, depois da derrota no Algarve com o Portimonense. Bruno Lage, aí como em novembro, surgia como solução a prazo enquanto se falavam de vários nomes como José Mourinho (que chegou a ser contactado pelas águias) ou Jorge Jesus. O técnico alheou-se do ruído em torno do sucessor de Vitória, ganhou para o Campeonato ao Rio Ave e ao Santa Clara e, na véspera do duplo confronto em Guimarães para Taça de Portugal e Primeira Liga, acabou por ser confirmado como treinador principal e já renovou entretanto duas vezes de contrato, até 2023 e 2024.

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10-0: a maior goleada dos encarnados em mais de 50 anos

Depois da vitória com o Rio Ave por 4-2, seguiram-se dois triunfos mais curtos fora frente a Santa Clara (2-0) e V. Guimarães (1-0) mas a semente daquilo que seria um dos ataque mais demolidores dos últimos tempos na Luz já estava lançada, como se viu nas goleadas a Boavista (5-1) e Sporting (4-2). No entanto, ninguém poderia prever aquele que ficou como o resultado mais volumoso do século XXI: 10-0 ao Nacional com golos de Seferovic (dois), Jonas (dois), Grimaldo, João Félix, Pizzi, Ferro, Rúben Dias e Rafa, algo que não se via há mais de 50 anos no Benfica. A última vez que os encarnados tinham ganho por essa margem foi em 1964, diante do Seixal.

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A segunda melhor volta de sempre, com 49 em 51 pontos possíveis

Bruno Lage começou a segunda volta do Campeonato com um triunfo sofrido em Guimarães pela margem mínima com golo de Seferovic a nove minutos do final, passou para a frente após a vitória no clássico no Dragão e a seguir empatou com o Belenenses SAD na Luz a dois depois de ter estado a ganhar por 2-0. Essa podia ter sido uma fase mais complicada mas os encarnados deram a melhor resposta de seguida, com nove triunfos consecutivos que garantiram não só o título como a melhor segunda volta de sempre do Benfica, com um total de 49 pontos em 51 possíveis, mais um do que Rui Vitória tinha alcançado na temporada de 2015/16.

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O quinto português campeão (e o mais novo no Benfica desde Toni)

Bruno Lage nunca tinha treinado na Primeira Liga, apenas tinha sido número 1 da equipa técnica nos escalões de formação antes de chegar à equipa secundária dos encarnados após alguns anos a trabalhar com Carlos Carvalhal no Sheffield Wednesday e no Swansea mas precisou de apenas 19 encontros para se sagrar o quinto português a sagrar-se campeão pelo Benfica (depois de Mário Wilson, Toni, Jorge Jesus e Rui Vitória) e o mais novo desde Toni, que fez a festa no final da década de 80 pela primeira vez. Em paralelo, foi apenas a segunda vez que as águias trocaram de treinador a meio da temporada e foram campeões, depois da exceção na temporada de 1967/68 quando passaram pelo banco Fernando Riera e Otto Glória com Fernando Cabrita pelo meio.

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O melhor ataque de sempre, uma máquina acima dos 100 golos

A goleada também contribuiu e muito para esse número simbólico mas não foi a única razão para o Benfica, com uma segunda volta sempre a acelerar, igualar o melhor ataque de sempre no Campeonato com um total de 103 golos como em 1963/64 – curiosamente o ano em que houve também o 10-0 ao Seixal. Além de ter o melhor marcador da Primeira Liga, Haris Seferovic com 23 golos, os encarnados terminaram com quatro jogadores no top 8 dos goleadores da competição, todos eles batendo os melhores registos pessoais da carreira enquadrados com uma ideia de jogo que retirou o seu melhor em termos individuais em prol das marcas coletivas: Rafa acabou com 17 golos só no Campeonato, João Félix chegou aos 15 e Pizzi marcou 13. E ainda houve Jonas, com 11 golos.

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João Félix, a face do sucesso da aposta no Seixal

Até à chegada de Bruno Lage, João Félix tinha feito 453 minutos em 14 jogos (cinco com titular, dois a realizar os 90′) com um golo marcado entre Campeonato, Liga dos Campeões, Taça de Portugal e Taça da Liga; até ao final da época, realizou 2.411 minutos em 29 encontros oficiais, sendo opção inicial em 28 e marcando 19 golos. A completa metamorfose no rendimento do jovem avançado contribuiu e muito para a metamorfose da equipa, que se adaptou da melhor forma a uma nova ideia de jogo com Pizzi, Rafa e Seferovic com Félix na frente. No final da temporada, devido a essa valorização individual entre o sucesso coletivo, o “impensável” (pelo menos a tão curto prazo) acabou por acontecer: o jogador formado no Seixal saiu para o Atl. Madrid por 126 milhões de euros.

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Como fazer uma renovação sem levantar ondas (ou o exemplo de Jonas)

No último jogo de Rui Vitória, em Portimão, Jonas não marcou, foi expulso e ainda se lesionou. Os alarmes na Luz soaram pela ausência do goleador que resolvia o que às vezes parecia não ter resolução mas, já com Bruno Lage, a aposta em Félix e Seferovic surtiu efeito e o brasileiro acabou por perder o comboio da titularidade. O que poderia ser um problema tornou-se solução e, quando entrava em campo, o número 10 mantinha o faro pelo golo, sendo dos mais entusiastas mesmo no banco nos jogos dos encarnados – e basta recordar a corrida de 100 metros que fez para festejar o então 3-1 de Rúben Dias em Braga. No início desta temporada, Jonas anunciou a retirada mas a sucessão já estava tratada, assim como aconteceu com Jardel ou Fejsa (estes ainda no plantel). De forma discreta e sem levantar ondas, o Benfica conseguiu renovar a sua equipa respeitando as referências dos anos anteriores.

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A goleada ao rival que deu um título – e uma mão cheia de recordes

Benfica e Sporting voltaram a encontrar-se no Algarve para discutirem a Supertaça três anos depois do encontro que marcou a estreia de Jorge Jesus pelos leões com muitas provocações e mind games à mistura mas a história foi bem diferente ou diametralmente oposta. Os encarnados conquistaram o troféu com uma goleada por 5-0 assente sobretudo numa segunda parte demolidora que acabou com números históricos: há mais de 30 anos que as águias não ganhavam com “chapa 5” ao rival e há 43 anos que não marcavam quatro golos num jogo grande depois do intervalo na final mais desnivelada de sempre desde que a prova passou a ser disputada num só encontro.

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A Europa para aumentar tamanho que se tornou um calcanhar de Aquiles

Os responsáveis do Benfica nunca esconderam a ambição de ir longe na Liga dos Campeões, não só pela vertente financeira mas também por uma questão de prestígio que servisse de alavanca para o crescimento dos projetos que o clube tem a nível internacional. E Luís Filipe Vieira, presidente dos encarnados, até foi mais longe em outubro de 2018, quando referiu no jantar comemorativo dos 15 anos na liderança das águias que o título europeu teria de ser uma realidade durante a sua vigência no cargo. No entanto, a Champions tornou-se o calcanhar de Aquiles para Bruno Lage: com uma rotatividade às vezes criticada por abdicar de algumas das principais unidades nos encontros europeus, os campeões nacionais averbaram três derrotas nos quatro primeiros jogos num grupo sem “tubarões” e o máximo que conseguiram alcançar foi a qualificação para a Liga Europa, onde vão defrontar o Shakhtar.

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Um arranque de Campeonato como nunca antes de vira (e o 94% de eficácia)

Bruno Lage superou o registo de Fernando Riera em 1962/63 tornando-se o treinador mais rápido a chegar às 25 vitórias no Campeonato (em 27 jogos) e bateu também o recorde de pontuação de sempre de um técnico nas 30 jornadas iniciais disputadas na Primeira Liga – 85 pontos conquistados em 90 possíveis, mais quatro do que Riera convertendo a pontuação da década de 60 de dois para três pontos. Mas a “saga” mantém-se, chegando nesta fase a uma eficácia de 94% sem precedentes: em 33 partidas disputadas para o Campeonato desde janeiro de 2019, Bruno Lage ganhou 31, empatou com o Belenenses SAD em casa e perdeu apenas com o FC Porto na Luz.

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O Canal Panda, a brincadeira que se tornou a melhor das ferramentas

Em fevereiro, quando questionado a propósito da valia de João Félix, Bruno Lage contou um episódio com o filho Jaime, hoje com quatro anos. “Quando cheguei a casa ele estava a ver os Super Wings. Perguntei-lhe ‘O que estás a fazer? Estás a ver os Super Wings?’  e ele respondeu-me ‘Não, agora são os Super Wings equipa, eles agora têm de trabalhar em equipa’. Com o Félix é a mesma coisa, tem o valor que tem se trabalhar em equipa”, referiu. As várias alusões ao Canal Panda surgiram por brincadeira mas tornaram-se uma ferramenta para Bruno Lage, que se sente à vontade é a falar de futebol e do “jogo jogado”, lidar da melhor forma com a imprensa, naquilo que em termos internos é considerada como mais uma vitória do treinador neste primeiro ano no comando técnico até pela sua própria maneira de ser e pelas constantes alusões a episódios e referências da história dos encarnados.

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O próximo recorde, que pode ser igualado em Guimarães e batido em Alvalade

Santa Clara, V. Guimarães, Sporting, Desp. Aves, FC Porto, Moreirense, Feirense, Sp. Braga, Rio Ave, Belenenses SAD, Sp. Braga, Moreirense, Tondela, Santa Clara, Boavista. Há adversários repetidos, há adversários com graus de dificuldade diferentes mas todos têm um ponto comum: perderam nas respetivas casas frente ao Benfica de Bruno Lage. E este sábado o treinador poderá somar mais um recorde em caso de vitória – igualar as 16 vitórias seguidas como visitado que os encarnados alcançaram na era Rui Vitória (e que contribuíram e muito para o título na época de 2015/16) até ao desaire na deslocação ao Dragão para defrontar o FC Porto. Sendo que, para ultrapassar esse registo, o adversário que se segue aos minhotos é o Sporting, na última jornada da primeira volta.

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