Luís Filipe Vieira e Jorge Jesus nunca tinham trabalhado juntos no mesmo clube até ao ano de 2009 mas já se conheciam por amigos comuns, já dos tempos em que o atual presidente do Benfica liderava o Alverca que subiu a pulso até ao primeiro escalão e o treinador dava os primeiros passos na Primeira Liga em que projetos onde ia deixando marca em Felgueiras, Estrela da Amadora ou V. Setúbal. Uns meses antes, Vieira soube que Pinto da Costa, que sempre teve uma admiração especial pelo técnico e pelo discurso ambicioso que sempre teve estivesse onde estivesse a lutar pelo que lutasse, sondara a sua situação. A campanha pelo Sp. Braga em 2008/09 tinha sido o trampolim que faltava para um “grande” e o presidente do Benfica não quis esperar mais após outra experiência falhada com um técnico estrangeiro, Quique Flores. As negociações foram difíceis. Custou 700 mil euros.

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Mais de uma década depois, Jesus deu a volta e regressou à casa de partida para os grandes voos. A relação entre ele e Vieira, que foi cultivando uma amizade muito próxima, viveu um momento de total distanciamento, voltou aos poucos à normalidade, passou ao que era outrora quando trabalhavam juntos. Cinco anos após a saída da Luz, o treinador chega com a perceção daquele que trocou o Benfica por um rival mas daquele que desenvolveu um trabalho notório no Flamengo. E chega com um contexto em parte semelhante ao que encontrara em 2009.

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Nesse verão, a posição de Luís Filipe Vieira estava fragilizada. O título em 2005, que quebrou o maior jejum de Campeonatos do Benfica (11 anos), chegou demasiado cedo para o que estava pensado e quando não existia ainda uma estrutura montada para que esse sucesso fosse regular – e é o próprio que admite. Seguiu-se o tetra do FC Porto de Jesualdo Ferreira (numa série iniciada por Co Adriaanse), que entrava em 2009/10 com a clara intenção de repetir o segundo penta da história e do futebol português (de 1996 a 2000). Pressionada, a Direção encarnada avançou com um pedido de demissão em bloco, precipitou as eleições, apresentou Jesus, apanhou a oposição que se tentava formar contra o tempo, esmagou Bruno Costa Carvalho com mais de 90% e avançou.

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Agora, o projeto desportivo é importante, a ideia de um Benfica capaz de ter outra ambição na Europa também, mas poucos passam ao lado do outro lado da questão: a contratação de Jesus, mesmo sendo alguém a quem nem todos perdoaram a saída para o Sporting, é um triunfo forte num período pré-eleitoral. Como em 2009.

Ao longo de seis épocas, o Benfica foi um carrossel de emoções, de resultados desportivos, de entradas e saídas de jogadores por verbas bem acima das que eram habituais até então. Jesus teve um primeiro ano de sucesso em que se sagrou campeão, teve uma segunda temporada em que foi atropelado pelo FC Porto de André Villas-Boas, teve a seguir duas épocas em que agarrou com uma mão o título mas perdeu-a com a outra nas jornadas finais. Em 2013, havia uma decisão fácil para Vieira: deixar sair Jesus. Perdera a Liga nos descontos da penúltima jornada com o FC Porto, perdera de seguida a final da Liga Europa nos descontos com o Chelsea, perdera por fim a final da Taça de Portugal frente ao V. Guimarães. Da queda de joelhos no Dragão ao empurrão de Cardozo no relvado de Jamor, parecia o fim de uma era. Ao invés, tornou-se o início de outra. E o líder encarnado segurou o treinador.

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Enquanto todos olhavam para as contas dos resultados finais, Vieira acreditou no processo até aos resultados finais e no crescimento do Benfica enquanto estrutura capaz de ganhar mais do que um Campeonato seguido. Entre 2013 e 2015, Jesus ganhou dois Campeonatos, uma Taça de Portugal, duas Taças da Liga, uma Supertaça e foi a mais uma final da Liga Europa, onde perdeu nas grandes penalidades com o Sevilha. Depois chegou a rutura, o seguir de caminhos diferentes, uma nova era para ambos que ainda hoje divide as visões que têm desses tempos.

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Vieira diz que sempre teve vontade em ficar com o técnico, que estava apenas à espera do final da temporada para se sentar e renovar contrato, que nunca mostrou outro sentimento que não fosse a permanência. Jesus considerou que, ao longo da época, estava a prazo, sentiu que a principal vontade dos encarnados era colocá-lo numa liga estrangeira (mais periférica, como China ou Arábia, ou menos periférica, que passaria por Itália) e abriu outras portas. No epílogo de uma novela de alguns dias com chamadas não atendidas, SMS, encontros secretos na SAD e na casa de um dirigente, bilhetes de avião sem viagem e reuniões em andares diferentes do mesmo escritório de advogados, assinou pelo Sporting. A relação sólida e de amizade sofrera um rude golpe.

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Jesus e Vieira cortaram relações. O Benfica apagou a imagem do técnico entre os vencedores do bicampeonato na loja do clube, falou em ingratidão, virou o foco para o sucessor Rui Vitória e para a capacidade que teria para fazer o que antes não tinha sido feito: apostar na formação. Jesus foi entrando em mind games que visavam sobretudo o homólogo e a capacidade que teria para comandar uma equipa que continuava a viver das ideias que deixara. Mais tarde, pelo próprio presidente, o então técnico do Sporting foi minimizado por não ter conseguido dar dimensão europeia aos encarnados. Em outubro de 2015, a guerra passou das palavras às ações (literalmente) e foi parar a tribunal, com o Benfica a exigir um pagamento de 14 milhões de euros em 54 páginas e 29 documentos – verba apurada pela conta de um euro por cada adepto encarnado espalhado pelo mundo – por uma alegada rescisão unilateral de contrato, por contactos com funcionários dos leões e por ter levado o software das águias para o novo clube e o treinador a pedir o mês de junho de 2015 que nunca foi pago apesar de estar contratualizado.

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Jesus levou vantagem nesse confronto dentro de campo até metade da temporada, com triunfos na Supertaça (que foi marcada pelas SMS que terá enviado a jogadores dos encarnados antes do encontro), na Liga por 3-0 para a Luz e na Taça de Portugal em Alvalade, após prolongamento. Depois, exagerou nas palavras, no discurso e isso acabou por reverter contra si e contra o Sporting, numa viragem carimbada com o triunfo dos encarnados no terreno do rival que foi a chave para o Campeonato de 2016. Houve ainda uma alfinetada no antigo presidente, quando disse que “o único ali que percebe de futebol é o Rui Costa”. Nesse ano, o discurso de Vieira já mudara. Afinal, não tinha nada a apontar a Jesus, “um excelente profissional, um bom treinador que saiu por opção própria mas que não conseguia fazer um planeamento a médio e longo prazo”. Em 2017, com amigos comuns a fazerem a ponte, as relações foram reatadas. Eram rivais em campo mas já se sentavam à mesa e conversavam como antigamente. Em 2018, os processos que tinham colocado caíam por mútuo acordo. Poucos meses depois, Jesus deixava os leões.

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No ano passado, no seguimento de uma Assembleia Geral do clube mais conturbada, o presidente do Benfica tomou a iniciativa de convidar 18 associados que tinham deixado questões na reunião magna para um encontro aberto, no Seixal, onde tentaria esclarecer todas as dúvidas. Aí, entre vários temas, e num contexto onde Bruno Lage era um novo herói dos encarnados por ter ganho o Campeonato com 18 vitórias e um empate desde que tinha substituído Rui Vitória, garantiu que Jesus não estava nos planos enquanto fosse líder, passando por cima da hipótese real que existiu de poder agarrar na equipa uns meses antes. No entanto, havia uma relação de novo forte entre ambos, como nos tempos em que ligavam de quando em vez de madrugada um ao outro para estarem a discutir aspetos ligados ao plantel, ao futebol ou mesmo jogadores. Quem dava os parabéns oficialmente pelos sucessos no Brasil pelo Flamengo era o Sporting, quem ia seguindo o trajeto do treinador era o Benfica.

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“A relação com o presidente do Benfica tem sido de amizade. É verdade no primeiro ano após sair do Benfica não foi. A minha saída do Benfica não foi do consenso geral principalmente dos benfiquistas e dele, que tomou essa opção mas já passou. Hoje sou treinador do Flamengo. Falo muitas vezes com o presidente do Benfica. Falo às vezes por telefone”, disse na BTV já este ano. “É verdade que tive um arrufo com o presidente. Tivemos aquele arrufo, ele achou que fui eu tomei o primeiro passo de saída, eu achei que não. Ficámos zangados, mas fizemos as pazes. Foram seis anos de trabalho. Ele conhece-me como ninguém e eu a ele. Aliás, criei amizade com todos os presidentes dos clubes onde trabalhei, menos um. Mas isso não é normal. É uma pessoa que não é normal”, disse numa outra entrevista, visando neste caso Bruno de Carvalho, antigo líder dos leões até junho de 2018.

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O impossível passou para difícil, o difícil passou para possível, o possível passou para provável, o provável passou a certo. Cinco anos depois da saída conturbada da Luz, Jorge Jesus deixou um país, um clube e uma cidade onde era um verdadeiro ídolo das massas para regressar a Portugal e ao Benfica. Houve vários fatores a contribuir para esse desfecho, da pandemia às dúvidas em relação às competições sul-americanas. No final, existiu uma escolha: aos 65 anos, o treinador podia escolher um caminho para a última parte da carreira onde tentaria repetir o sucesso que teve pelo Flamengo, deixar uma marca ainda mais profunda no futebol brasileiro e poder ficar mais perto de um dia chegar à seleção ou, em contrapartida, assumir que a título pessoal esses triunfos trouxeram notoriedade mas não o reconhecimento desportivo para atingir um clube que lutasse pela Champions e que só na Europa ficará perto desse patamar. Foi pelo segundo, apoiado num projeto desportivo para o Benfica em que acredita e que tem igualmente ambições europeias. E Vieira foi vital para Jesus, assim como Vieira quer que Jesus seja vital para si.

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