Filomena Araújo, delegada regional de saúde do Alentejo, rejeita a ideia de que tenha havido erros pelos profissionais que lidaram com o surto de Covid-19 no lar de Reguengos de Monsaraz, onde morreram 18 idosos.

Numa entrevista à Rádio Observador, Filomena Araújo afirma que não recebeu o relatório da Ordem dos Médicos, onde são apontadas falhas às várias estruturas locais.

A região do Alentejo conseguiu praticamente resistir ao período mais crítico da pandemia mas nos últimos dois meses o cenário mudou e o número de casos aumentou, aliás duplicou face aos primeiros três meses críticos: março, abril e maio. Filomena Araújo, o que correu mal?
Não acho que correu mal, é a situação decorrente da mobilidade de pessoas. O Alentejo tem 5% da população do resto do país, portanto nos primeiros meses a situação foi controlada, tivemos muitos poucos casos. De 16 de março a 30 de abril surgiu o primeiro caso, de 30 de abril a 20 de maio nós praticamente não tivemos casos, mas no país a situação também foi mais ou menos estável e depois, com a mobilidade das pessoas nestes últimos meses, naturalmente a disseminação vai se fazendo. Não é correr mal, temos de estar muito atentos a todos os casos, uma grande articulação entre todas as autoridades de todo o país onde vamos tendo indicações de todos os contactos de risco que são relacionados para a região, como também informamos para os outros lares, portanto isto não há fronteiras…

Mas diz que não é uma questão de correr mal mas ainda assim se olharmos para os casos…
Não é uma questão de correr mal, é que de facto os casos acontecem e nós vamos tentando conseguir conter muitos dos surtos e nestes últimos tempos temos estado a verificar que a maior parte dos casos são em surtos…

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Então vamos olhar para um desses surtos, o surto de Reguengos de Monsaraz, um lar onde morreram 18 pessoas. Partindo dessa sua visão de que não se trata propriamente de ter corrido mal e tendo falado na articulação que está a ser feita entre as várias entidades, aparentemente uma das coisas que falhou, segundo o relatório da Ordem dos Médicos no caso deste surto, foi precisamente a articulação entre as várias entidades que não existiu ou foi tardia. O que explica que tenha acontecido aquilo que aconteceu em Reguengos de Monsaraz?
O que eu lhe estava a dizer era que em termos de surtos e de articulação institucional era dentro da própria instituição no ministério da saúde e das próprias autoridades de saúde na referenciação de contactos de risco, de forma a podermos conter nos locais onde haja os contactos a disseminação…

Esse é o primeiro passo para lidar com um surto, mas depois há vários passos que, aparentemente, não foram dados no caso de Reguengos de Monsaraz. Porque é que não foram dados?
Não sei do que está a falar. Relativamente a Monsaraz, logo que tivemos a indicação do primeiro caso, todos os passos foram dados, foram identificados todos os contactos de risco, quer no estabelecimento quer na comunidade, e nesse caso seguiu todos os procedimentos que todos os outros que temos tido desde março até agora…

Logo depois de ter sido detetado o primeiro caso, praticamente três dias depois, dizia que o surto de Reguengos “não era nada do que não se estivesse à espera” e que “estavam prontos a intervir”. Nessa altura não havia qualquer vítima mortal. Podemos dizer que subvalorizou o problema?
Eu nunca subvalorizei nada como nunca subvalorizo nada. Quando tivemos o primeiro caso, imediatamente fizemos toda a avaliação decorrente dos contactos de risco do primeiro caso que foi identificado. Ao fim de três dias tínhamos todos os casos identificados.

Mas depois de identificar os casos, é preciso agir em relação às pessoas que estão doentes. E o facto de ter havido a identificação dos contactos, que no caso do lar de Reguengos sendo um lar não era propriamente uma tarefa muito difícil e de ser feita a triagem e o rastreio de todas as pessoas, há um relatório que seguramente conhece que diz que as pessoas foram praticamente deixadas ao abandono, em salas sem condições, com doentes infetados misturados com doentes não infetados, com lixo no chão, com urina seca no chão… O que lhe perguntava em relação àquilo que não foi feito, depois dessa primeira triagem e da identificação dos contactos, era exatamente isso, porque depois disso morreram 18 pessoas no lar.
O que lhe estou a dizer é que não tenho conhecimento desse relatório, não me chegou… a única coisa que sei é pelos órgãos de comunicação social e portanto não me vou pronunciar sobre aquilo que não recebi para me pronunciar. Segundo aspeto, todos os procedimentos relacionados com as normas do ponto de vista de saúde pública que tínhamos a fazer, fizemos. Estou a falar numa perspetiva de saúde pública e pediram-me para fazer esta entrevista sobre um balanço da evolução da pandemia no Alentejo e é isto que eu tenho a dizer enquanto médica de saúde pública e quanto acompanhante deste processo ao longo destes meses todos. Relativamente a Monsaraz tivemos um surto, com disseminação na comunidade, efetivamente há a lamentar 18 óbitos, numa população residente no estabelecimento residencial para pessoas idosas, e que lamentamos imenso…

Se diz que todos os procedimentos foram seguidos, significa que estas 18 mortes eram inevitáveis?
Não me vou pronunciar sobre esta questão, até porque eu desconheço o relatório da Ordem dos Médicos, não me foi presente, não fui interrogada…portanto a única coisa que eu digo é que há normas, há procedimentos e todos os procedimentos foram seguidos…

Mas Filomena Araújo, a autoridade, desconhecendo este relatório da Ordem dos Médicos ou qualquer outro relatório, a autoridade regional do Alentejo tinha ou não tinha conhecimento das condições deste lar?
Se o senhor está a partir de um pressuposto de um relatório que reafirma…

Não estou a partir de um pressuposto, estou a perguntar se antes deste surto tinham conhecimento das condições deste lar e das condições que depois foram praticadas quando foi detetado o surto?
Não me vou pronunciar ao surto de Monsaraz, não foi esse o pedido de entrevista e reafirmo que todas as medidas necessárias para salvaguardar o bem estar e a sobrevivência. Seguimos as normas estabelecidas.

Pode assegurar que isso tudo aconteceu, que tudo o que deveria ter sido feito foi feito, em relação a Monsaraz?
Ficamos sempre na dúvida se podemos fazer mais, como a pergunta “se todas as mortes podem ser evitadas”. Neste momento não me vou pronunciar sobre este caso concreto, em investigação.

Filomena Araújo, vamos então olhar para outras regiões do Alentejo. Em Mora está ativo um surto com cerca de 50 casos, há dezenas de pessoas que estão a aguardar resultados. Já se conseguiu perceber a origem deste surto?
De acordo com os dados da investigação epidemiológica, temos cerca de 300 pessoas em vigilância ativa. Estamos neste momento a intervir no sentido de conter o surto.

E exatamente o que estão a fazer para isso, para além da questão de confinamento da população? A população tem se confinado, digamos, de forma profilática.
À população pedimos para evitar aquilo que são fatores de risco para a disseminação do vírus, e portanto evitar-se agrupamentos e festividades e manter o distanciamento físico, ter as medidas de higiene, evitar de facto os grande agrupamentos… Neste momento temos 15 surtos na região e tiveram origem em festas de aniversário ou outro tipo de festas, em grande aglomerações sociais, em que há grandes ajuntamentos e portanto facilitam a disseminação. Portanto, isso pedimos às pessoas para evitar, manter a distanciamento físico, evitar eventos sociais favorecedores da disseminação, isto foi o que foi pedido. Foram também propostos e, alguns fizeram-no por auto-iniciativa, a suspensão de algumas atividades… à população pede-se os cuidados como em todo o país e em todo o mundo se está a pedir. Relativamente à intervenção da saúde pública a identificação de todos os contactos de risco e estamos a tomar medidas pro-ativas e profiláticas a grupo mais vulneráveis. Temos neste momento identificados todos os estabelecimentos residenciais para pessoas idosas e estamos  fazer um rastreio a todos os profissionais no sentido de identificar alguma pessoa que esteja infetada e tomar medidas imediatas relativamente a esses estabelecimentos.

Em relação a esse trabalho da saúde pública, a senhora confirma a informação que foi divulgada no inicio deste surto de que ele poderia ter começado com um casal de Mora que foi ao estrangeiro e depois quando teve os sintomas e o teste positivo já no Algarve, numas férias, não informou ninguém sobre o seu estado, pessoas com quem pudesse eventualmente ter estado ainda em Mora. Isto aconteceu assim, é esta a origem do surto?
Não temos ainda o caso…

Falava da situação de rastreio no Alentejo e do acompanhamento que têm feito dos profissionais como da população. A região do Alentejo tem condições a nível técnico e de recursos humanos para garantir acompanhamento e rastreio da população, tal como foi feito noutras zonas do país?
Até agora e em termos de testes, temos capacidade instalada suficiente para fazer, quer a nível do Serviço Nacional de Saúde, quer a nível também de recurso quer à Universidade de Évora quer aos privados. Mas neste momento em termos de capacidade instalada, não deixamos de fazer nenhum rastreio ou teste por falta de capacidade e neste momento temos capacidade instalada para fazer testes. Estão criadas condições para o tratamento através dos serviços hospitalares. De facto precisamos, se a situação aumentar, de mais recursos em termos nomeadamente na saúde pública, porque a sobrecarga para a saúde pública, como deve compreender, se nós neste momento temos 500 pessoas em vigilância ativa para o surto de Mora e de Montemor, sem falar dos outros portanto que são menores…

Além desse dois surtos quais é que são os que mais preocupam as autoridades neste momento? Que surtos são esses?
Estes são preocupantes porque ainda são recentes e não estão em fase de resolução. Os outros estão resolvidos, estão em fase de resolução, portanto já com indicadores de contenção. Portanto só não estão resolvidos, porque só consideramos surtos resolvidos ao fim de dois ciclos, 28 dias desde o seu inicio.

Pode-se pôr a questão de estabelecer uma cerca sanitária em Mora ou neste caso em Montemor?
Neste momento ainda não temos indicações para tal.

E acha que deveria haver?
Não, não tenho, pela avaliação diária que estamos a fazer, indicação que nos seja neste momento necessário. Se os indicadores forem nesse sentido, analisaremos a situação.

E tem a haver com o quê? Com um aumento do número de casos da disseminação da doença? Que fatores são esses, que podem determinar essa cerca?
A cerca sanitária não é uma decisão de ânimo leve, só se terá se virmos que a situação está descontrolada, neste momento não temos indicações nesse sentido.

Nos últimos dias vários partidos da oposição têm criticado as ligações partidárias na região do Alentejo, críticas que apontam para as ligações socialistas nos diferentes cargos políticos. Sente que estas teias partidárias na região têm dificultado o trabalho das autoridades de saúde?
Relativamente a isso, não tenho nada a dizer. Fazemos o nosso trabalho de uma forma apartidária , visando a população e solicitando os meios e fazendo as articulações sem terem em conta as questões relacionadas com qualquer partido, ou qualquer outra situação.

A “teia” do Alentejo. A direção do lar que só tem socialistas, o Zé das Festas e uma fundação familiar

Neste momento que garantias é que as autoridades sanitárias podem dar se aquilo que se passou em Reguengos de Monsaraz, nomeadamente no lar da terceira idade, não se volta a repetir noutra qualquer região do Alentejo?
Para já não somos autoridades sanitárias mas sim autoridades de saúde, peço desculpa. Por outro lado, o risco existe em todo o lado,  a disseminação do vírus tem a haver com múltiplos fatores que todos os dias somos supreendidos com novas “nuances”. Ninguém lhe pode dizer que em lado nenhum, do país e do mundo, que está tudo garantido. O que eu posso dizer é que compete a todos, à população, manter o seu trabalho. A todas as instituições fazerem o seu papel, seja no caso dos estabelecimentos, deste tipo de estabelecimentos que me está a referir, as próprias direções, os próprios profissionais terem especial atenção aos cuidados e salavaguardar cumprindo as normas usando todos os EPIS (equipamentos de proteção individual) e de transmissão também para os outros, mas isso, queira aqui quando abrirem as escolas, seja nos transportes públicos, quando vamos à mercearia ou aos supermercados, todos têm de ter esse cuidado. Todas as instituições, não só as de saúde mas a segurança social, autarquias, proteção civil, bombeiros, todos os outros temos obrigação de evitar a disseminação usando os equipamentos para evitar a contaminação de todos e para nos protegermos, para continuarmos cá a trabalhar e salvaguardar a proteção da saúde humana.

A contratação de médicos aposentados que foi permitida até para neste momento de pandemia conseguirem ajudar o trabalhos das autoridades de saúde — concorda com essa medida? No caso de Reguengos correu mal tendo em conta que o médico, delegado de saúde tinha mais de 70 anos e por isso pertencia a um grupo de risco.
Primeiro o caso de Reguengos não correu mal por causa do delegado de saúde ter mais de 70 anos. As autoridades de saúde não funcionam individualmente, é designada uma pessoa da autoridade de saúde que tenha competências tendo o apoio por lei de equipas multidisciplinares. O delegado de saúde pode inclusive, por lei, delegar. Portanto, refuto que não correu mal por causa  da questão do correr mal que continua a insistir e não correu bem porque há a lamentar vítimas, a disseminação de um surto na comunidade é sempre uma situação preocupante, grave e que fazemos todos os esforços para conter. Não foi pelas pessoas terem 70 anos e deixarem de ter as competências ou não. As pessoas têm competências, o caso do colega em causa que está a referir é uma pessoa competente, dedicada, que fez todos os esforços e delegou como a lei faculta em técnicos de acordo com as suas competências, quer num dos delegados de saúde quer numa enfermeira coordenadora do grupo local que pertence ao programa de controlo da infeção e resistência microbianos, que tem as competências adequadas para avaliar aquilo que na altura suscitava. Não era a autoridade de saúde que tinha de ir fazer essa avaliação, portanto reafirmo que é um erro e uma difamação estarem a dizer que uma pessoa com 70 anos deixou de fazer o trabalho, não, ele fez o que tinha a fazer com a sua equipa requisitando serviços e delegando pessoas com as competências para as funções que eram necessárias ter como a lei lhe permite. Relativamente à questão de ter ou não, de contratar médicos aposentados, os recursos são escassíssimos. Na região do Alentejo temos neste momento…

Filomena Araújo vou ter de a interromper e pedir para concluir por favor…
Deixe-me só dizer, no Alentejo temos neste momento 10 médicos de saúde pública colocados para um terço do país, para 500 mil habitantes… portanto se não fosse o recurso àqueles que estão disponíveis neste momento, apesar de já estarem aposentados, para trabalhar e que toda a sua vida deram o contributo para salvaguardar a vidas das pessoas não teríamos! É uma responsabilidade de todos, é uma responsabilidade integrar os mais jovens e concerteza que muitos são necessários, mas não é por termos pessoas de mais idade que as coisas estão a correr mal.

“Não correu mal. Monsaraz seguiu todos os procedimentos”. A entrevista à delegada de Saúde do Alentejo