A Direção-Geral da Saúde (DGS) considera que as pessoas que estiveram infetadas com o coronavírus SARS-CoV-2 antes ou depois de tomarem a primeira dose da vacina contra a Covid-19 não devem tomar a segunda — a dose de reforço —, confirmou fonte oficial da DGS ao Observador. A autoridade de saúde admite, no entanto, que “não existe evidência suficiente para uma recomendação definitiva” e que, por isso, a recomendação pode ser alterada no futuro. A indicação aplica-se também aos lares que tiveram surtos nos últimos meses — mas não aos outros.

À data, considera-se que estas pessoas não devem ser vacinadas com a segunda dose, considerando-se que ficam com o ‘esquema vacinal completo’. Contudo, esta recomendação pode sofrer alteração ao longo do tempo, de acordo com a evolução do conhecimento científico”, admite fonte oficial.

A resposta da DGS, assim como a norma 002/2021, não fazem qualquer distinção quer a pessoa tenha sido infetada em março de 2020, em novembro, já este ano ou em qualquer outra data: a regra é a mesma independentemente do momento em que a pessoa foi infetada.

Luís Graça, imunologista e investigador no Instituto de Medicina Molecular (Lisboa), concorda com a orientação e explica ao Observador que o primeiro contacto com o vírus permite que o organismo guarde uma memória da resposta imunitária — nomeadamente os linfócitos T — que pode ser reativada mesmo passado vários meses.

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Não corro o risco de os meus anticorpos desaparecerem até levar a vacina?

Pelo contrário, os anticorpos ficam ainda melhores.

Cada vez que o organismo é exposto a um agente estranho, nomeadamente um vírus, como o SARS-CoV-2 há uma resposta imunitária imediata, como a produção de anticorpos em poucos dias, e a produção de células de memória que permitirão ao organismo dar uma resposta melhor e mais rápida na próxima infeção com o mesmo vírus. É por isso que algumas vacinas têm uma segunda dose, que serve não só para produzir mais anticorpos, mas, sobretudo, para produzir anticorpos melhores.

O tipo de resposta que uma infeção natural (com o próprio vírus) ou que uma vacina desencadeia são equivalentes neste ponto. Daí que a DGS considere que ter sido infetado antes ou depois da primeira dose funcione quase como uma segunda vacina. O imunologista Luís Graça, que também faz parte da Comissão Técnica de Vacinação da DGS, defende, por isso, a recomendação adotada.

O especialista em imunidade e anticorpos explica o processo ao Observador, comparando os anticorpos com ventosas que se ligam ao vírus. Na primeira infeção (natural ou com a vacina), as ventosas, produzidas pelos linfócitos B, conseguem ligar-se ao vírus, mas não muito bem. Numa segunda infeção (natural ou com a vacina), os linfócitos B já sofreram mutações que permitiram tornar os anticorpos melhores, ou seja, levaram à produção de ventosas que se fixam com mais força ao vírus.

Depois de os linfócitos B passarem por este processo [de mutações que leva ao aprimoramento dos anticorpos], em vez de termos duas ventosas em cada vírus, temos 50″, ilustra o investigador.

A produção de anticorpos começa ao fim de poucos dias, atinge o pico por volta do 10.º dia e começa a decair a partir do 20.º dia. Durante este período, está em curso o processo de mutações nos linfócitos (ou células) B que vão melhorar a afinidade dos anticorpos, a força com que se ligam aos vírus, explica o imunologista. Dar a segunda dose antes dos 20 dias, não teria qualquer benefício porque o processo ainda está a decorrer — daí que as doses sejam dadas com um mínimo de três semanas de intervalo.

Luís Graça defende, até, que se devia dar a segunda dose mais tarde. Por um lado, o número de anticorpos vai diminuindo ao longo do tempo, mas não é subitamente e não chega até zero. Por outro, “do que se sabe da resposta imunológica entre as doses da vacina, um prazo mais alargado entre doses faz com que a resposta à segunda dose tenha mais qualidade do que num prazo mais curto” — tal como acontece com as vacinas do Plano Nacional de Vacinação.

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Se tiver uma reinfeção com uma nova variante, corro mais riscos se tiver tomado uma só dose da vacina?

Uma infeção e uma dose da vacina são consideradas como um plano de vacinação completo, com eficácia equivalente a duas doses da vacina.

Sempre que há uma infeção, há produção de anticorpos e depois um processo de aperfeiçoamento dos anticorpos, como referido. Entre os alvos dos anticorpos está a proteína spike (a mais usada nas vacinas contra a Covid-19), logo mutações nos genes que provoquem alterações na proteína fazem com que a ventosa não se fixe tão bem. Mas não é um tudo ou nada.

Os anticorpos aperfeiçoados depois da primeira infeção vão ter uma afinidade melhorada contra as partes conservadas da proteína (ou seja, aquelas que não sofreram alterações), explica Luís Graça. Já as partes modificadas, novas para o sistema imunitário, vão desencadear a produção de novos anticorpos, as tais primeiras ventosas que funcionam, mas ainda não são perfeitas.

A resposta pode não ser tão boa como quando se trata de uma reinfeção com a mesma variante ou com uma mutação que não provoque alterações significativas na proteína spike, mas isso não quer dizer que o sistema imunitário não consiga, mesmo assim, dar uma boa resposta.

Por já ter estado infetado vou ser excluído da vacinação contra a Covid-19?

Não, apenas não será considerado nas fases prioritárias da vacinação.

“Reconhecemos que as pessoas que recuperaram de infeção por SARS-CoV-2 não devem ser excluídas do plano de vacinação”, clarifica a DGS. “A vacinação de pessoas recuperadas ocorrerá logo que a disponibilização de vacinas aumente.”

O problema, de facto, é a limitação na disponibilidade das vacinas e a necessidade de maximizar o benefício das que existem, no sentido de se alcançar a imunidade de grupo. As pessoas que já estiveram infetadas não são vacinadas para já, mesmo que reúnam outros critérios de prioridade, porque já têm alguma proteção contra o vírus. A prioridade é, assim, dada a pessoas vulneráveis que não tenham tido uma infeção natural, ou seja, “que não tenham ainda tido a possibilidade de desenvolver resposta imunológica”.

Sobre quantas doses vai tomar uma pessoa que esteve infetada, fonte oficial da DGS especifica:

  • quem foi infetado depois da primeira dose não toma a segunda porque “considera-se que tem resposta imunológica eficaz”;
  • quem esteve infetado antes da primeira dose, mas mesmo assim fez a primeira toma, “não deve ser vacinada com a segunda dose, considerando-se que fica com o ‘esquema vacinal completo’;
  • quem esteve esteve infetado e ainda não tomou nenhuma dose da vacina, ainda “está ainda a ser analisado” se vai tomar uma ou duas doses.

E se levar duas doses por engano, mesmo tendo estado infetado?

Não há problema.

As restrições na toma das doses prendem-se mais com a gestão dos recursos — no caso, vacinas — do que com riscos para a saúde da pessoa. Luís Graça diz que “não se antecipa que haja qualquer problema de ter estado infetado e ter tomado duas doses”.

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Quantas doses tomam os infetados noutros países?

É variável consonante o organismo que emite as recomendações.

A autoridade de saúde francesa (HAS, Haute Autorité de Santé) recomendou, a 12 de fevereiro, que deve dar-se apenas uma dose da vacina a quem já esteve infetado com Covid-19. Na altura, a Organização Mundial de Saúde alertou que não existem estudos que mostrem que uma única dose pode servir como reforço da imunidade de quem esteve infetado.

A orientação dos Centros para o Controlo e Prevenção da Doença norte-americanos também é para a toma de duas doses, mesmo para quem recuperou da infeção ou esteve infetado entre a primeira e a segunda dose. E justificam: “Os especialistas ainda não sabem durante quanto tempo estamos protegidos de ficarmos doentes novamente mesmo depois de recuperados da Covid-19”.

Em França, no entanto, — e ao contrário de Portugal — quem ficou infetado depois da toma da primeira dose deve tomar a segunda dose, mas não no tempo previsto. Em vez dos 21 ou 28 dias para as vacinas da Pfizer/BioNTech ou Moderna, respetivamente, passaria a ser passados três a seis meses.

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A DGS justifica as diferenças entre países com a escassez de dados científicos. “Contudo, existe experiência com outras vacinas e outras infeções que permite considerar esta estratégia como segura e adequada“, acrescenta a DGS.

Luís Graça explica que o grau de evidência científica exigida por cada organização para tomar ou alterar determinadas opções é variável. E que, naturalmente, as opções baseadas na ciência também podem ter de incluir os benefícios para a Saúde Pública. Havendo escassez de vacinas, haverá um “potencial ganho em saúde por se vacinar primeiro quem não teve infeção do que dar a vacina a quem já teve infetado e tem algum grau de proteção”, exemplifica o imunologista.

Mesmo que os recuperados da infeção voltem a ser infetados esta infeção “será menos grave”, Luís Graça. Porque, mesmo que já tenha passado tempo suficiente para os anticorpos diminuírem, “as células T vão ser capazes de proteger da doença grave”, que leva aos internamentos e, potencialmente, à morte.

Nos lares, as pessoas que estiveram infetadas também não vão ser vacinadas?

Depende da altura em que ficaram infetadas.

No caso dos lares e unidades de cuidados continuados, cujos utentes e funcionários estão incluídos nos grupos de risco da primeira fase da vacinação, a estratégia recomendada pela DGS tem uma nuance: o antes e o depois do início da campanha de vacinação (ou seja, o final de dezembro).

“Nas ERPI [Estruturas Residenciais para Idosos], instituições similares e unidades da RNCCI [Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados], a vacinação de todas as pessoas elegíveis, independentemente da história prévia de infeção por SARS-CoV-2 anterior ao início da campanha de vacinação contra a Covid-19, permite uma melhor gestão do plano logístico e de administração”, lê-se na norma 002/2021 da DGS.

A lógica foi de que mais valia vacinar mesmo quem já tinha sido infetado do que deixar de vacinar quem ainda não tinha sido infetado, pela dificuldade de identificar uns e outros. Luís Graça apoia esta decisão, porque “mais de 30% de todas as mortes por Covid-19” aconteceram nos lares, apesar de os utentes representarem “pouco mais de 1% da população do país”.

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A regra muda caso o surto tenha acontecido depois no início da campanha de vacinação — portanto, desde o final do ano passado —, em que só serão “vacinadas as pessoas que não desenvolveram Covid-19 durante o surto”. Isto porque, depois de iniciado o processo, se tornou mais fácil identificar quem esteve e quem não esteve infetado do que nos casos ocorridos no ano passado.

A justificação passa, assim, a ser a mesma que para os restantes casos de infeção: “As pessoas que recuperam da Covid-19 têm uma resposta imunológica recente que as protege de novas reinfeções, pelo menos durante alguns meses”. Também neste caso serão vacinadas quando houver maior disponibilidade de vacinas.