O debate entre Luís Montenegro e Mariana Mortágua expôs, sem surpresas, duas visões totalmente opostas sobre o país e o a organização da economia, que entraram em choque de forma constante, mostrando ponto por ponto tudo o que separa PSD e Bloco de Esquerda. Num debate em que nenhum dos dois teria a ganhar em manter a paz na sala, ambos partiram ao ataque e aproveitaram os fantasmas do passado — para o PSD a troika, para o BE a colaboração com o PS nos anos da geringonça — para se responsabilizarem mutuamente pelos problemas que o país enfrenta hoje.

A dinâmica, sempre marcada por interrupções e acusações fortes, começou logo no primeiro dos temas levados a debate: a Saúde. Mortágua arrancou acusando o PSD de ter feito “uma cópia do programa extremista da IL ou até do Chega” e foi a pontos mais concretos das propostas sociais democratas para as tentar desmontar, garantindo que a maior aposta no já existente cheque-cirurgia vai levar a um desvio ainda maior de médicos para o privado. Resultado? “O PSD defende o agravamento dos problemas” na Saúde e agora quer “pagar ao privado para ir buscar médicos ao SNS”, resumiu.

Foi neste ponto que Montenegro lançou a sua estratégia de colar a bloquista, que defende novos acordos com o PS incluindo na área da Saúde, a Pedro Nuno Santos — uma estratégia que aplicaria, ponto por ponto, até ao fim do debate. Começou por provocar a adversária, dizendo que já parece “candidata a ministra da Saúde de Pedro Nuno Santos”; responsabilizou a esquerda pelas “tropelias” que puseram o SNS no estado em que está; e rematou acusando a bloquista de ser “cúmplice” do PS: “É corresponsável pelo pior desempenho da democracia portuguesa na gestão do SNS”.

A acusação será uma das mais apontadas ao Bloco, numa altura em que faz um equlíbrio difícil entre criticar a governação do PS e pedir um novo acordo que, garante, será mais exigente do que o anterior. Ainda assim, Mortágua fez questão de se defender recordando que as propostas para o SNS, como a exclusividade dos médicos com majorações salariais mais altas, foram a causa de um “enorme conflito” que manteve com o PS, e uma das principais razões para o fim da geringonça: “Pode acusar-me do que quiser, não pode acusar o BE de não ter apresentado propostas para a Saúde e ter levado até ao fim”.

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Pelo seu lado, Montenegro prosseguiu acusando a adversária de “falar de um país que não existe” — para rejeitar as críticas de Mortágua ao modelo dos hospitais geridos em parcerias público-privadas — e de andar “obcecada com o Estado”, que coloca em primeiro lugar, antes da preocupação com as pessoas. E garantiu que o seu programa de emergência para a Saúde acabará com as filas de espera no SNS até 2025.

Os vistos Gold vendidos na Rússia e o sonho de baixar preços “por magia”

O tópico mudou, mas o clima aguerrido manteve-se igual. O segundo grande tema do debate foi a Habitação e serviu para uma troca de acusações mútuas sobre não existirem, do outro lado, respostas eficazes para o setor — até porque os dois têm visões opostas sobre a forma como o mercado funciona e deve ser regulado.

Montenegro acusou Mortágua de ter o “sonho” de baixar os preços, “como por magia“, e de acabar por retirar casas do mercado ao querer controlar essas rendas — o PSD prefere agir pelo lado da oferta, apostando em parcerias com o setor privado para construir mais oferta pública e reduzindo as burocracias e o “castigo fiscal” sobre quem quer investir.

Já Mortágua, que quer controlar rendas e reduzir os spreads aplicados pela Caixa Geral de Depósitos aos créditos à Habitação, apontou responsabilidades ao governo anterior do PSD, que culpou pela “lei dos despejos” — “eu vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio” — e pela corrida aos vistos Gold — “O PSD foi à Rússia reunir com oligarcas de Putin para vender vistos Gold. Por isso hoje em Lisboa e no Porto há mais alojamento local do que pessoas a viver”.

Aqui também não haveria consenso possível: Montenegro acabou a acusar o Bloco de querer transformar Portugal numa “nova Venezuela”, Mortágua ripostou defendendo que “não há coisa mais extremista ou radical que uma renda de 1500 euros”, e o líder social democrata acabou por voltar a recuperar a memória do PS, desta vez do ministro Pedro Nuno Santos, para atacar a adversária: “Tivemos um primeiro-ministro e um ministro da Habitação, que Mariana Mortágua pretende que seja seu parceiro de governação, que são responsáveis pelo falhanço total na política de Habitação.” Mortágua acabaria por acusar o PSD de ter estado, ele sim, “ao lado do PS” ao aprovar políticas como os vistos Gold ou os benefícios fiscais como residentes não habituais.

O último tema teria a ver com política fiscal, pretexto adequado para voltar a expor as visões económicas opostas de PSD e BE. Se o BE diz que não são os impostos que têm de se reduzir (embora proponha algumas reduções no IRS ou no IVA da energia, por exemplo), mas antes os salários que têm de aumentar, para que o país não volte “ao século XIX” e tenha um Estado social forte, o PSD opõe-se à carga fiscal atual e diz que os impostos elevados “comprimem a capacidade do país de criar riqueza“.

O assunto acabaria por levar a mais uma disputa sobre uma antiga, e muito citada, frase de Luís Montenegro — que em 2014, para dizer que os indicadores económicos estavam a melhorar, disse que o país estava melhor mas a vida das pessoas não — que virou contra Mortágua para acusar o BE de adotar uma nova versão: “O país está pior e as pessoas muitíssimo pior”.

Para a líder bloquista, as reduções de impostos propostas pelo PSD resolverão pouco — lembrou que muitos jovens já não pagam IRS porque ganham demasiado pouco, pelo que não seriam beneficiados por reduções do imposto, ou que a maior parte das empresas não paga IRC. Para o líder do PSD, estas resistências levam a que a economia não possa ser mais atrativa ou competitiva.

As frases finais foram elucidativas sobre os pecados que ambos apontam ao modelo económico do adversário: Mortágua diz que o PSD vai beneficiar as grandes empresas e agravar a desigualdade — “5% de Portugal tem metade de toda a riqueza, e Montenegro quer agravar essa taxa” — e Montenegro rematou defendendo que o modelo económico de Mortágua “já foi rejeitado no Leste da Europa” e serve para “agravar a pobreza“. No final, não foi possível encontrar nenhum ponto em comum — nem outra coisa seria de esperar.

O diálogo mais revelador

Mariana Mortágua — Vamos pôr a hipótese de que os cheques-cirurgia eram aceites. A maior parte das queixas do Portal da Queixa são por atrasos no privado. Se todos os doentes fossem enviados para o privado, o privado não teria resposta. O que iria acontecer eram filas de espera. A não ser que, para resolver o problema, o privado fosse contratar médicos ao SNS. O resultado é que o Estado estaria a pagar ao privado para retirar os médicos do SNS e como consequência a lista de espera no SNS aumentava. Ou seja, não resolveu nenhum problema de Saúde, tem uma Saúde mais cara e com pior serviço.

Luís Montenegro — Lamento que a Mariana Mortágua, porta-voz de um partido de esquerda, tenha tão pouca confiança no SNS. Eu confio muito no SNS e acho que vale a pena salvá-lo daquilo que foi uma caminhada de degradação que tem o seu cunho. Estamos no pior momento do SNS, criado em 1979, depois de três governos do PS, dois dos quais tiveram o apoio do BE. Foi com estes governos que em Portugal mais pessoas tiveram necessidade de contratar seguros de saúde. Em segundo lugar, há muitos problemas estruturais para resolver no SNS, e ele tem de ser salvo face às tropelias que vocês impuseram. (…). Em 2024 e 2025 vamos acabar com a lista de espera, mudando a sua gestão com uma melhor performance, como acontecia com as PPP e que com a sua vontade ideológica fechada transformaram em hospitais com muito menos capacidade de resposta.

Mariana Mortágua — O doutor Montenegro não faz a mínima ideia de como se resolve o problema da Saúde. A mínima.

Luís Montenegro — E você faz, por isso é que o resultado dos últimos oito anos são pessoas à porta das urgências, pessoas sem médico de família…

Mariana Mortágua — Eu peço que nas interrupções seja contado o tempo do doutor Luís Montenegro.

Luís Montenegro — Não me importo que seja contado. Mas essa frase não pode passar em claro: é corresponsável pelo pior desempenho na democracia portuguesa na gestão do SNS. 

Mariana Mortágua — Eu tive um conflito, e o BE teve um conflito, que toda a gente conhece com o PS e pretendo discuti-lo com o PS, não certamente com o PSD. Até porque a única solução que tem, notou-se neste debate, é que as pessoas recorram mais ao privado.