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A última entrevista a Alexandre Soares dos Santos. “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média"

A falta de rumo do país. As queixas dos políticos. A hora que tem o seu nome. E a luta contra o cancro. Alexandre Soares dos Santos morreu esta sexta-feira. Esta foi a sua última entrevista.

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Nota: Esta entrevista foi realizada e publicada em fevereiro de 2019. O Observador recupera-a agora, na sequência da morte do empresário português. Se preferir, pode ouvi-la na íntegra, clicando aqui.

Em 1968 estava no Brasil, já tinha cinco filhos e planeava lançar o seu próprio negócio. Mas quando o pai chegou para uma visita e morreu nessa mesma noite a sua vida mudou. Alexandre Soares dos Santos deixou de ser um quadro da Unilever para regressar a Portugal e tomar conta da empresa familiar, a Jerónimo Martins. O grupo tinha então 300 trabalhadores – hoje emprega 110 mil. Em Portugal, na Polónia e na Colômbia.

Aos 85 anos Alexandre Soares dos Santos já não vai todos os dias ao último andar do edifício nas Amoreiras onde fica a sede da empresa e também a da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a menina dos seus olhos que acaba de completar 10 anos e onde a família já investiu 74 milhões de euros. Já venceu dois cancros e combate agora um terceiro, que encara de forma serena: “Afeta-me morrer? Não. Com 85 anos morrer de cancro ou morrer da vida, já fiz o que tinha a fazer…”

Nesta entrevista de vida que é também um retrato ácido do país que somos, o empresário tanto recorda os primeiros dias do seu casamento, há 61 anos, quando vivia com a mulher num quarto na Alemanha porque não havia dinheiro para mais, como se orgulha de ter escolhido Portalegre para o seu mais recente investimento industrial, uma fábrica de leite, porque assim evitou que muitos trabalhadores fossem para o desemprego. E revela qual a sua relação com os pobres: “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média e depois subirem se possível. É para isso que a gente luta.”

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Veja no vídeo os melhores momentos da entrevista a Alexandre Soares dos Santos:

A entrada na Jerónimo Martins: “O momento decisivo na minha vida foi a morte do meu pai”

Quando tomou conta da Jerónimo Martins a empresa tinha 300 empregados, hoje são 110 mil. Como é que conseguiu isto?
Como é que consegui isso? Trabalhando…

Trabalhar, trabalhamos todos, mas é necessário mais do que isso.
Não. É preciso trabalhar bem e ter um sentido de missão e ter um sentido de para onde se quer ir. A partir daí, você arranca. Mas quando arranca tem de ter a noção do tempo. As coisas não acontecem de um dia para o outro. Por exemplo, se olhar para os caminhos que nós seguimos, é muito mais difícil construir uma equipa de management forte, coesa e conhecedora, do que a parte financeira. Ora, a construir um team demora um certo tempo. De maneira que tem de se ser consistente e coerente e não começar a variar e tornar as coisas de médio e longo prazo em curto prazo. Nós começamos devagar, tentando perceber, dentro de uma missão de que tínhamos sido incumbidos, que era continuar com a Jerónimo Martins. A ideia inicial era o Jerónimo Martins crescer, porque era um grupo envelhecido, que vivia praticamente, naquela época, da indústria. A Fima Lever teve um impacto enorme na nossa organização, e na aprendizagem de todos os problemas que as grandes empresas têm. E para isso eu, por exemplo, trabalhei 12 anos na Unilever, fui quadro na Alemanha, quadro na Irlanda, em França e no Brasil.

Há um momento em que decide não continuar a estudar Direito e ir…
Para a Unilever, para a Alemanha.

Para a Alemanha. Esse é o momento decisivo da sua vida?
Não. O momento decisivo na minha vida foi a morte do meu pai. Naquela altura era diretor de marketing da Unilever no Brasil. Tinha acabado de ser convidado para me transferir para os Estados Unidos. E o meu pai chegou e morreu nessa noite. Na noite em que chegou. Portanto, de certa forma, foi uma coisa muito dramática. E depois foi a própria Unilever que entendeu que eu deveria vir para o Jerónimo Martins. Não podíamos deixar morrer [o Grupo]. E vim. Ao chegar à Jerónimo Martins deparei-me com uma empresa que era o maior armazenista do país na época, mas com todo o mundo envelhecido. Porque o meu avô só dava emprego a quem tirasse um curso — e o meu avô pagava o curso — de maneira que os anos passaram e as pessoas foram ficando, ficando, ficando, mas não se foram modernizando. Encontro pois uma casa velha, em que éramos todos amigos, éramos todos família. Ao domingo jogávamos futebol todos juntos. Era isto a Jerónimo Martins. Ora, esse foi o momento importante em que tive de lutar para mudar e para nos tornarmos uma empresa moderna.

Elísio Alexandre Soares dos Santos (à direita), no dia do casamento do seu filho, Alexandre Soares dos Santos

Sara Miranda

Isso foi quando?
Foi em 1968, 1969. Comecei em 1968 na Jerónimo Martins. O ponto de partida foi o meu avô e o que ele fez. Considerava que ninguém tinha o direito — que era a teoria existente na família já — de que devíamos vender tudo, a Fima Lever, fechar a Jerónimo Martins e cada um ia para seu sítio. Não aceitei porque, como já disse várias vezes, o meu avô deixou a aldeia aos 10 anos e foi para o Porto trabalhar numa mercearia. Dormia em cima dos fardos. Aos 30 anos tinha mil contos.

Mil contos naquela época…
Devia ser muito dinheiro.

O seu avô é o Francisco Manuel dos Santos, que deu nome à Fundação.
Era um tipo fabuloso. [Demos esse nome] para homenageá-lo. Acho que é bom nós tomarmos como princípios e valores as coisas boas do passado. E continuarmos. Não é dizer, como agora é moda em Portugal, que nos Descobrimentos parece que fomos uns malandros do pior. Bem, quem deixa um Brasil-Nação, quem deixa uma Angola-Nação, sem divisões, falando a mesma língua… Não me venham dizer que nós falhámos, por amor de Deus.

Sempre teve como paixão fazer o que fez, ou a morte do seu pai obrigou-o a seguir o caminho que seguiu? Quis seguir outra atividade na vida?
Não, não. Quando estava no Brasil já tinha cinco filhos, então olhávamos para o futuro e verificávamos que o futuro estava no Brasil, porque acabávamos uma fábrica e começávamos outra. Era sempre a crescer. A taxa de crescimento dos produtos era na casa dos 20%. Estava deliciado com o Brasil. Mais a mais, coincidiu com a revolução de 1964 em que, de facto, o Brasil naquela época não era ditadura. Era uma democracia… não muito aberta, mas existia. Chefiada por um homem notável, que era o general Castelo Branco. Quando se estragou depois aquilo tudo foi a partir do Costa e Silva. Eu e a minha mulher discutimos a possibilidade de deixar a Unilever e passarmos a ser cidadãos brasileiros, e começarmos o nosso próprio negócio. Era esta a carreira.

Francisco Manuel dos Santos saiu de Safurdães para ir trabalhar numa mercearia do Porto. "Aos 30 anos tinha mil contos", conta o neto.

Queria lançar-se por si só?
Absolutamente, absolutamente. Olhava e dizia: tenho cinco filhos, o que é que vou fazer para Portugal? Tenho este mundo todo à frente… Não é o Brasil, São Paulo já chegava. Entretanto o meu pai morreu. Pronto, olha, mudou tudo E quando me transferi, a transformação foi que deixei de ser um quadro superior de uma multinacional, para sentir aquilo que era nosso. E isso fez com que me dedicasse de uma forma total ao crescimento da Jerónimo Martins e da família.

A Jerónimo Martins foi associada muito tempo a uma loja no Chiado, era a sua imagem. Essa loja desapareceu com o incêndio.
Graças ao arquitecto Siza Vieira, que não deixou reconstruir.

Por sua vontade ainda haveria uma loja da Jerónimo Martins no Chiado…
Tive uma grande discussão com o engenheiro Abecassis [então presidente da Câmara de Lisboa], que estava perfeitamente do nosso lado, mas o Siza Vieira foi intransigente. E depois como era um comunista bem alinhado, boa noite… E então, mudámo-nos. De certa forma, quando olho para trás, até foi benéfico, porque foi um corte com o passado e passámos a olhar para a frente. É muito curioso que tem o ciclo do comércio, o ciclo da indústria, depois voltou ao comércio com a distribuição moderna e agora está virando, lentamente, para a indústria outra vez.

Não conheço país no mundo que ponha tantas dificuldades e tantos atrasos. Até em parques de estacionamento. O Oceanário esteve mais de dois anos à espera que a Câmara o autorizasse a alargar o parque de estacionamento. E só se conseguiu porque o meu filho Zé encontrou o Medina e perguntou-lhe porque é que ele não despachava. E no dia seguinte estava despachado. Eu pergunto: o tipo que tinha aquilo na gaveta foi para a rua? Não...

Hoje o grupo está a alargar horizontes para uma indústria mais integrada e a novidade é uma fábrica de leite em Portalegre. Por que razão foi para Portalegre, no interior, quando toda a gente diz que não se vai para o interior?
É uma boa pergunta porque quando se pensou entrar no leite para acabar com as importações e passarmos a ter domínio sobre a nossa cadeia de valor, a escolha foi Santarém. Entretanto, em Portalegre havia uma fábrica praticamente falida. E o meu filho Pedro veio falar comigo e disse ‘Ó pai, a lógica é Santarém, mas vão tantas pessoas para o desemprego com o encerramento desta fábrica de leite. Por que não a fazemos lá?’ Isto é um problema que se insere muito numa política social. E então eu disse-lhe: vamos reconstruir. E reconstruímos a fábrica, completamente nova. Por uma razão de emprego. Custa-nos ver pessoas no desemprego. Em Portalegre, se fecha uma fábrica, arrumou… Não há mais hipótese para aquela gente.

Mesmo assim teve imensas dificuldades para obter as autorizações todas…
Oh filho, mas isso tem-se em Portugal em qualquer sítio e em qualquer coisa. Não conheço país no mundo que ponha tantas dificuldades e tantos atrasos. Até em parques de estacionamento. O Oceanário esteve mais de dois anos à espera que a Câmara o autorizasse a alargar o parque de estacionamento. E só se conseguiu porque o meu filho Zé encontrou o Medina e perguntou-lhe porque é que ele não despachava. E no dia seguinte estava despachado. Eu pergunto: o tipo que tinha aquilo na gaveta foi para a rua? Não…

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Isso é um problema de quê? De cultura? Ou é um problema da forma como temos o Estado organizado?
Não sei. Eu acho que é uma falta de profissionalismo, de seriedade e de ética. As pessoas estão por lá e dizem ‘isso vem dali, aguenta aí’. Fala-se muito em corrupção e ela existe, em grande. Mas eu não tenho nenhum caso concreto — tirando pequenas coisas — de corrupção. Sente-se que muitas vezes temos de vir cá para baixo, falar com os fulanos de baixo, para ver se fazem encaminhar para cima. Com a fábrica de Portalegre, o Pedro escreveu uma carta ao primeiro-ministro a dizer que as 15 instituições assinavam, que tinha a fábrica completamente parada e estava nova. E pronto, lá despacharam…

Não sente que essa “resistência burocrática” é fomentada por alguns empresários que beneficiam dos contactos mais diretos com os decisores? Há falta de organização dos empresários para que isso mude?
O empresário português, como qualquer português, é um individualista. Não gosta de se associar. Deveríamos ter associações muito fortes que depois lutassem. Mas os empresários não querem, porque muitos — infelizmente — dependem do Estado para financiamento ou para outras coisas… E, portanto, falta-lhes aquela energia, aquele drive necessário para lutar. Mas nós começamos a perceber que temos de forçar, dirigirmo-nos ao primeiro-ministro e questioná-lo. E as coisas saem. É claro que um primeiro-ministro não é para isto, mas é o país em que vivemos. Encontramos problemas desde o governo até às câmaras e em todas as outras instituições.

Uma pergunta descarada, que sei que gosta. Acha que alguns dos políticos até gostam disso, porque acabam por ter os empresários a fazerem-lhes pedidos, a dependerem deles?
Disse no outro dia que nós estamos numa ditadura do Estado. Nós vivemos em ditadura. Porque somos obrigados, para tudo, a ir ao Governo pedir uma licença. Caso típico: a Unilever vendeu as margarinas e como tal não temos condições para as fabricar, porque a tecnologia de desenvolvimento está com a Unilever. A operação que já foi feita há meses e meses ainda não foi concretizada em Portugal porque é preciso pedir ao governo uma licença. A licença é uma mudança do acionista, não é mais nada! Por que tenho de ir ao governo? Porquê?

E encontra o mesmo género de problemas na Polónia?
Não! Na Polónia toca para a frente. Na Polónia é fundamental cumprir a lei, cumprindo a lei tudo anda.

Mesmo com este governo, nacionalista?
Até agora, impecável.

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Fundação: “É a ela que dedico o meu tempo a discutir”

Várias vezes disse que das coisas que mais prazer lhe dava, que mais o fazia sentir realizado, eram as fundações. Vai a caminho de três, mas gosta particularmente da Fundação Francisco Manuel dos Santos e que tem muita esperança numa outra que aí vem. Por que diz isso? Para quem criou 110 mil postos de trabalho, é a Fundação que lhe dá mais prazer?
Primeiro deixei de trabalhar. Nos negócios é o meu filho Pedro que comanda e eu faço questão de não me misturar, até porque foram muitos anos e com o andar dos tempos começa-se a ficar mais receoso, começa-se a perguntar ‘Isto vale a pena? Porquê?’. Um dia, no fim de um conselho do grupo Jerónimo Martins, o professor António Borges virou-se para mim e disse-me — e nunca mais esqueci esta frase — ‘Alexandre, o nosso querido Jerónimo Martins está a perder agressividade. Cuidado’. Fui para casa e à noite, a conversar com a minha mulher, disse ‘olha, o António Borges hoje disse-me isto, assim e assim, e amanhã vou-me embora, que ele tem razão. E o culpado sou eu. No dia seguinte fiz a minha carta de demissão e vim-me embora. A Fundação é completamente diferente, porque não é um negócio. É uma responsabilidade social da família. Dentro de um conjunto de atividades que nós temos, como a Casa do Arco Maior, no Porto, que tem 160 crianças, e vamos continuar a crescer. A Fundação é para transferir para as pessoas o conhecimento. Levar-lhes o conhecimento. Obrigá-las a sentir o que é o direito de cidadania. O que temos de fazer para não nos queixarmos do Governo, mas termos voz ativa nas decisões. É a ela que dedico o meu tempo a discutir.

Que caminhos deve trilhar a Fundação nos próximos tempos?
Não é com debates em Lisboa ou sessões no Porto que a gente chega lá. É trabalhando em conjunto com os municípios e é com eles que quero trabalhar. Cada um tem as suas necessidades, as suas dificuldades, vamos então organizar reuniões em que a população de um determinado município está lá e nós ouvimo-la. E faz-se mais qualquer coisa para que as pessoas venham. Isto parece teoria pura, condenada ao falhanço. Como tudo em Portugal: um tipo tem uma ideia nova e diz-se ‘isso é uma estupidez, não vale a pena’. Não! Ninguém dizia que o estudo sobre a mulher teria o impacto que teve. Porquê? Porque respondemos a uma necessidade. É isso que temos de fazer, saber o que se passa nos municípios e saber quais as necessidades das populações e criar movimentos para ir apoiar. E eu adoro isso!

A Fundação já fez dezenas de estudos. Sente que no parlamento, nos gabinetes, alguém pega neles e lhes dá seguimento?
Gostaria de pensar isso, mas não acredito. Nós temos problemas em Portugal por uma razão muito simples: porque nos recusamos a olhar para o médio e longo prazo. Em três ou quatro anos não se faz nada, só se muda a legislação fiscal, o que nos põe doidos mas não incentiva o investimento. Temos é de saber para onde é que queremos ir. Vamos ter reformas ou não? Quais são as dificuldades que temos? Serviço Nacional de Saúde, é uma coisa para ficar, para alterar e como? Isto tem de ser um documento aprovado por um parlamento e que vai ser implementado, sob juramento, durante pelo menos dez anos. Com as correções necessárias, mas não com mudanças de legislatura. Veja tudo quanto se passa com o SNS: greves, anulações de cirurgias, isto, aquilo e aqueloutro. Quando fala com médicos inteligentes e que não são politicamente ligados a nada em especial, eles dizem-lhe: dez hospitais no Estado era suficiente. Mas 10 hospitais de grande categoria, com médicos permanentes e a ganharem bem. Fizemos o teste em Coimbra, com o professor Manuel Antunes, e funcionou em pleno. Alguém recolheu isso? Não.

A escolha entre o Brasil e a Polónia: “O melhor que nos aconteceu foi ter fechado o Brasil”

E o professor Manuel Antunes até já está aposentado. Já se reformou.
Pois, e tirou-se alguma coisa? Ele de certeza que deixou grandes médicos. Nós entendemos que é tudo o Estado. E o Estado suga-nos o dinheiro. Não pode ser. Dez hospitais chegam — universitários, oncologia, cardiologia —, mas tudo topo do topo. E o resto entregar aos privados. Que fazem um acordo com o Estado sobre como dar assistência. E não precisávamos deste gigante que suga dinheiro a todo o custo.

KIMMY SIMÕES/OBSERVADOR

Como vê este conflito entre a ADSE e os privados? Alguém tem razão?
Muito francamente não faço a mínima ideia. Acho que é uma manifestação de incompetência não se chegar a acordo, quer seja com os médicos, com os enfermeiros, quer com os professores. Quando os sindicatos dizem que é assim e o outro lado também, eles têm que se sentar e discutir. E não me venham dizer que não é possível, porque nós tivemos 1974 e 1975 com comissões de trabalhadores violentas com quem houve sempre diálogo e nunca houve incidentes. As comissões de trabalhadores, depois daquela primeira fase política, azeda, começam a perceber onde é que estão desde que, do outro lado, sintam que há boa vontade e seriedade.

Mas há uma coisa importante: no sector privado os trabalhadores sabem que o seu posto de trabalho também depende do sucesso da empresa. Um sindicato do Estado não tem esse problema…
Claro! Mas para dialogar com os sindicatos são necessárias pessoas com experiência. Foi uma das coisas que mais aprendi em 1974 e que a Unilever me ensinou: percebê-los, questionar e discutir. Até chegar a acordo. Ora como é que é possível que uma ministra que tome a pasta hoje estar amanhã reunida com os sindicatos? O que é que ela sabe dos antecedentes, de qual foi a posição dos colegas? Isto tem de ser muito bem estudado, porque os sindicatos não são mais os analfabetos do passado. E mais: têm um problema de sobrevivência, porque a adesão aos sindicatos é cada vez mais baixa.

Porque é que sentiu que Portugal era pequeno para si?
Porque não há crescimento.

Primeiro teve o Brasil…
Bem, isso foi um falhanço de todo o tamanho. Um barrete, pá…

Podia ter desistido…
Foi uma lição de humildade. E percebermos que termos sucesso num país, não quer dizer que vamos ter noutro. Se não o estudarmos convenientemente. E no Brasil, nós tomamos o Brasil como um pouco de Portugal. Fui muito culpado. Porque fui a pensar num Brasil de 1964, quando o Brasil não era mais do mesmo. Mas teve uma virtude: levámos uma lição de humildade completa. E depois tivemos que escolher e escolhemos rapidamente, a Polónia, e na Polónia não fizemos mais erros. Os erros começam no cuidado que há que ter na escolha do management. Pessoas que saibam ser expatriados, que saibam manter o equilíbrio, porque de um dia para o outro ganham mais do que no seu próprio país e têm condições que não tinham, como casa, escolas para os filhos, etc. Tudo isso nós corrigimos e o resultado está à vista. Digo-lhe uma coisa, o melhor que nos aconteceu foi ter fechado o Brasil. Porque senão não era nem líder no Brasil, nem na Polónia. E assim, com aquela sensação da derrota, queria vencer na Polónia. E vencemos.

"Consegui [impôr a Hora Alexandre Soares dos Santos, 15 minutos de antecedência] visitando as pessoas às 8h00 da manhã. E deixar um cartãozinho, gostava de ter falado consigo e tal e coisa. E aos poucos as pessoas começam a perceber 'Este gajo está a chegar cedo'."

A hora Soares dos Santos: “É um problema de profissionalismo”

Todas as pessoas que trabalham consigo sabem que há uma regra sagrada: até lhe chamam a hora Alexandre Soares dos Santos. Se há uma reunião marcada para as 10h00, é para estar às 9h45. Em Portugal se é às 10h00 pode-se chegar às 10h15. Como conseguiu impor a hora Soares dos Santos, que é diferente da hora portuguesa?
Consegui-o visitando as pessoas às 8h00 da manhã. E deixar um cartãozinho, gostava de ter falado consigo e tal e coisa. E aos poucos as pessoas começam a perceber ‘Este gajo está a chegar cedo’. De maneira que vamos tratar de estar… E porquê? Porque sou a favor do contacto com a pessoa e chegando mais cedo a uma reunião, sento-me com o quadro e tento saber como está a ir a carreira dele, se está contente, como vão as coisas em casa, que é uma coisa muito importante. A gente vai falando, sobre a companhia, etc. E já nos cumprimentamos todos e às 9h00 já começamos a trabalhar. Isto aprendi na Unilever, onde um diretor me disse: ‘Se te deitares às 06h00 da manhã, às 08h00 estás aqui’. E é verdade. Tive um colega holandês, representante aqui na Unilever, o Mr. Derby, um tipo giríssimo. E uma vez foi fazer uma conferência aí numa associação. Estava para as 9h00 e começou às 9h45. E ele virou-se para a assistência e disse ‘são um quarto para as dez aqui em Portugal, um quarto para as onze em Barcelona. Quantas pessoas já tentaram falar com vocês e vocês não estavam na companhia?’ Foi um baile… mas é verdade. Isto é muito importante: disciplina, rigor.

Porque é não se consegue fazer o mesmo no resto do país?
Porque o país todo gosta disto. Gostamos do café, depois há quem tenha de ler “A Bola”. Aliás aqui, no sétimo andar, há uma cafetaria onde as pessoas podem comer qualquer coisa e fumar. A mim dá-me um gozo entrar no elevador às 9h20 — que hoje não tenho horário de chegada — e ver o sétimo andar. ‘Entraram às 9h00 e já estão a fumar e a tomar o pequeno-almoço outra vez? Estão a perder produtividade. O pequeno-almoço toma-se antes, não é durante’.

Tendemos a culpar os políticos de tudo quando há comportamentos que fazem parte da nossa própria cultura, que não conseguimos ultrapassar…
Exacto. Nós somos muito culpados de muita coisa. Eles não são culpados de tudo. Não interferem no nosso dia-a-dia. Se tenho de começar a esta hora, começo. Se tenho de cumprir isto, cumpro. É uma das coisas boas na Polónia: se é necessário fazer uma apresentação, chamo um tipo e digo ‘preciso disto, disto e disto, para o dia tal, às tantas horas’. E está lá. Está lá. Não precisa de perguntar como é que está a ir. Aqui, precisamos. ‘Como está a ir essa apresentação? Vai em dia ou não vai em dia?’ É um problema de profissionalismo. De nos habituarmos ao rigor.

"Falta-me a palavra... eu era rebelde. Fui interno para o colégio porque era rebelde. Foi o padre Doutor Avelino Soares, diretor da escola, que me acompanhou e me corrigiu parte da irreverência" 

Isso começa na escola?
Começa na escola. Tudo começa na escola.

Teve essas lições no Colégio Almeida Garrett, no Porto?
No Almeida Garrett tive uma coisa muito importante na minha vida: o padre Doutor Avelino Soares, diretor da escola, que me acompanhou e me corrigiu parte da irreverência e da… falta-me a palavra… eu era rebelde. Fui interno para o colégio porque era rebelde e foi o reitor da Universidade de Coimbra quem aconselhou o meu pai a mandar-me, primeiro para Santo Tirso, depois mudou de opinião e mandou-me para o Almeida Garrett. Eu e esse padre criámos uma ligação muito forte. Muito forte. E ele corrigiu-me imenso. Tenho imenso a agradecer-lhe. Imenso. O Almeida Garrett tinha uma coisa muito boa: bons professores e a religião não era a prioridade. Nós íamos à missa se queríamos, confessávamo-nos se queríamos. Não era obrigatório. Conheci muitos colegas que foram depois amigos durante a vida, daquelas fábricas todas do Norte: Fafe, Guimarães. Muito interessante. E visto à distância nós percebemos por que é que muitas coisas aconteceram àquelas indústrias.

O jovem Alexandre Soares dos Santos frequentou o Colégio Almeida Garrett, no Porto. Para controlar a "rebeldia", diz.

Explique lá isso um pouco melhor…
Recusavam-se a ver a mudança. Um dos problemas que existe nas empresas com o management é que este não pode estar muitos anos na mesma função porque senão deixa de ver o que o rodeia. Julga que sabe tudo. E as empresas do Norte eram altamente dependentes do patrão. Como ainda são em muitos casos. E as empresas já não são mais do patrão, são de nós todos. Essa história do mandar já acabou há muito tempo. É comandar, é orientar, é motivar. E isso faltou lá em cima. Esse é outro problema complicado, que é o problema das empresas familiares em que a certa altura nascem ciúmes, invejas.

Mas nestes anos mais difíceis que passámos foi esse tecido empresarial que deu força ao país…
Foi, foi… É que também há uma coisa muito importante neste jogo: se a família tiver gente competente, é capaz de transmitir para todos os outros os valores que a guiam, os seus códigos de conduta. E isso é muito importante, porque fortalece o management, porque acredita na companhia e nos seus gestores. O que temos de ter é uma conduta impecável: se eu for almoçar fora com a minha mulher, quem paga sou eu, não é a companhia. E as pessoas sabem-no. O carro que hoje tenho é meu, não é da companhia. Isto é muito importante não só para dentro como para fora, para o resto da família. Esta profissionalização da família é fundamental.

Foi isso que faltou à nossa banca, aos nossos banqueiros? Faltaram valores?
Os nossos banqueiros desapareceram todos no 25 de abril. Foram substituídos por gestores de várias correntes.

Mas depois tivemos uma segunda geração…
Já não eram banqueiros. O único banqueiro da segunda geração foi, talvez, o Jardim Gonçalves. Os outros eram todos gestores. Aliás, o exemplo da Caixa Geral é notório…

A Caixa é um banco público, logo teriam de ser todos gestores.
Teriam sempre de ser gestores, mas gestores com carreira, com nome feito, respeitados. E as nomeações eram políticas.

"Não estou mais nesses caminhos, não estou. Sou um conservador, com 85 anos, quase. Portanto não me peçam que eu volte a vestir calções. Não dá."

Está horrorizado com aquilo que se sabe da Caixa?
Fiquei muito surpreendido. Desagradavelmente surpreendido. Repare na diferença entre banqueiros: quando me espalhei no Brasil, sofremos uma crise financeira muito forte aqui dentro. E a banca deu-me uma grande sopa. Exceto a única pessoa que eu não conhecia, o engenheiro Jardim Gonçalves. Percebeu o que tínhamos feito, percebeu os erros que fizemos, percebeu os erros que corrigimos e percebeu o plano que lhe fui apresentar. E virou-se para mim e disse: ‘Nunca lhe irá faltar dinheiro’. E nunca faltou. E eu recuperei. Era um banqueiro. Outro exemplo: o doutor Eduardo Furtado — doutor não, que ele nem era licenciado —, presidente do conselho de administração do Sottomayor. Em 1968 apareceu-me um dia na Jerónimo Martins a dizer: ‘Era muito amigo do seu pai, venho dizer-lhe que estou ao seu dispor, sempre que precisar de conselhos, fala comigo’. Isto é que é ética e ligação ao cliente, criando laços de confiança. Que depois, em caso de necessidade, podemos utilizar. E isso explica por que saí do negócio. Não estou mais nesses caminhos, não estou. Sou um conservador, com 85 anos, quase. Portanto não me peçam que eu volte a vestir calções. Não dá.

O seu filho já trabalha melhor com os novos banqueiros…
Completamente diferente. Tem uma outra compreensão que eu não tinha.

A admiração por Soares, a inteligência de Guterres e o defeito de Passos: “Honesto e com vontade, mas que não ouvia”

A religião tem importância na sua vida?
Eu sou cristão, não tanto católico. É os valores, o respeito pela pessoa humana. É o respeito pela lei, percebe? A seriedade da sua conduta. Não tenho nada a ver com os pobres, os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média e depois subirem se possível. É para isso que a gente luta. Mas não é o ‘pobre, tem que ser ajudado, coitadinho’, porque isso é ajudá-lo a ser pobre. E nisso discordo profundamente da Igreja Católica. As empresas que não fazem lucro não podem fazer nada. As que fazem lucro têm de dividi-lo pelo acionista e pelas pessoas que trabalham na companhia, e pelo investimento. Por isso estou farto de propor — farto! — de propor a diferentes primeiros-ministros e ministros das Finanças que criem leis que me permitam distribuir dividendos a quem trabalha e não posso. O nosso sistema é estúpido.

Poder, pode…
É, mas eles pagam 25% de IRS. Então qual é o gozo? Fomos obrigados a ir para o caminho do prémio. Mas o prémio tem uma dificuldade estúpida, porque é atribuído pela administração, enquanto o dividendo é atribuído obrigatoriamente porque está nos estatutos. É por isto que eu me bato. Os governantes acham interessantíssima a ideia, mas depois boa noite… Talvez por isso o meu grande problema nos anos das eleições é se vou votar ou não… E vou votar forçado pelos meus netos. ‘Então o avô dizia que nós tínhamos de ir votar, e agora não vai? Nem pense’.

Mas houve algum primeiro-ministro que o tenha impressionado? Algum com vontade de fazer reformas a valer?
(Silêncio) É difícil. Tinha admiração pelo Mário Soares. O engenheiro Guterres era um homem inteligente, mas não foi feito para liderar o Governo. Um tipo interessante que me deixou boa impressão por um lado, como homem honesto e com vontade, foi o Passos Coelho, mas que não ouvia. Não sabia ouvir. Quando a gente tentava — das poucas vezes que estive com ele — contar uma história diferente, ele rejeitava a conversa. Estava convencido que ele é que sabia. E o António Costa, até hoje não sei quem ele é. Dizem que mantém a legislatura. E depois? O que é que isso quer dizer? Vamos deixar bem claro que eu hoje não tenho ideologia nenhuma. Essas já foram todas para o caixote há muito tempo. Hoje estou interessado é no meu país. Quando olho para os meus 18 netos e sete bisnetos, pergunto qual será o seu futuro e o de outros que trabalham connosco há tantos anos. E nós vamos no caminho errado. Não temos rumo.

Alexandre Soares dos Santos casou a 28 de dezembro de 1957 com Maria Teresa Canas Mendes da Silveira e Castro

Sara Miranda

A doença: “Com 85 anos morrer de cancro ou morrer da vida, já fiz o que tinha a fazer…”

Está casado há 60 anos…
Há 61!

Era namoradeiro antes de casar?
Foi a única namorada que tive, a minha mulher. Nunca tive outra. Foi amor de uma viagem. Fui com o meu pai a África, tinha 18 anos. E na vinda, a minha mulher tinha ido a um casamento de uma sobrinha e então fizemos convivência a bordo. Naquela altura não havia avião. Vínhamos nove dias de barco. Era giríssimo, aliás. Conheci a minha mulher e começámos a andar, até que um tempo depois começámos a namorar.

Pediu-a em casamento quanto tempo depois de a conhecer?
Quatro anos depois. Foi quando fui para a Alemanha e senti que estava em condições de poder oferecer uma segurança.

"Fui para a Alemanha uma semana ou duas depois de ter casado. E fui viver num quarto, porque não havia casas. Isso criou no casal uma união extraordinária. Ganhava-se pouco, naquela época. Passava o domingo num hotel, com a minha mulher, sentados cada um com o seu livro."

Sempre partilhou com ela a decisão de mudar de país, de ir para a Alemanha, para o Brasil?
Sabe que me aconteceu uma coisa muito importante, e à minha mulher. Você quando vai transferido para um país, não conhece ninguém. Eu fui para a Alemanha uma semana ou duas depois de ter casado. E fui viver num quarto, porque não havia casas. Isso criou no casal uma união extraordinária. Ganhava-se pouco, naquela época. Vivia-se num quarto e passava o domingo num hotel, com a minha mulher, sentados cada um com o seu livro. Eu bebia um cálice de vinho do Porto, que sou um grande amante de vinho do Porto, e ela tomava o seu chá. Depois íamos para casa, não tínhamos carro. E depois, fomos para a Irlanda, a mesma coisa. Foi sempre tudo melhorando, mas sempre fazendo um caminho sozinho. Isso criou entre nós uma ligação única, única. É impressionante. Não imaginava nada que fosse assim.

Por que razão não gosta das redes sociais, dos computadores? Não acha que é um facilitador nos negócios?
É uma falha minha, já estou tarde para aprender. Privilegio muito o contacto. Muito.

Lembra-se do primeiro computador portátil que lhe puseram em cima da secretária?
Nunca tive nenhum, detesto isso. Detesto! E jornal tenho de o ler.

Não lê o Observador?
A minha filha quando tem um artigo bom, imprime e manda-mo.

E no telemóvel?
No telemóvel? Quer ver o meu?

O Nokia 6310i, como o de Alexandre Soares dos Santos, foi introduzido no mercado em 2002 e descontinuado em 2005.

Sei qual é, é um Nokia muito antigo [um Nokia 6310i edição especial da Mercedes-Benz]… Tem consciência de que as pessoas mais novas já nem conseguem compreender esse tipo de registo?
Perfeita consciência. Por isso é que estou encostado. Não adianta defender coisas que na prática já não funcionam, mas por email não sei ver se você está bem disposto ou não. Se está com problemas ou não. Enquanto que se for ao seu gabinete ou tomar um pequeno almoço consigo, sei ver como está. Ainda hoje convido pessoas para o pequeno-almoço, para conversar, não estou a fazer exame, não estou a fazer avaliação, estou a sentir as pessoas, a permitir que transfiram conhecimentos.

Tem um percurso de vida carregado de adversidades. Já ultrapassou muitas questões que têm a ver com negócios. Já enfrentou doenças sérias. Como é que tem sido essa luta?
É interessante, engraçado. As primeiras doenças que tive não me afetaram em nada. E estive à morte, mesmo. Mas não sei, por auxílio da minha mulher, dos filhos e dos médicos, reagi. A esta é que não estou a reagir bem. Porque não sei o meu dia de amanhã, percebe? Não sei se um cancro da… — [dirigindo-se à filha Inês] como é que se chama o que eu tenho? — pâncreas. Eles dizem que estou cada vez melhor, que as análises estão muito boas, mas não sei o dia de amanhã. Continuo a fazer quimio, agora vou fazer umas vacinas novas, etc. Mas não sei. Afeta-me morrer? Não. Com 85 anos morrer de cancro ou morrer da vida, já fiz o que tinha a fazer… Não me vou preocupar com isso. Gostava de estar aqui mais uns tempos para ver determinadas coisas…

Tais como?
Ver os meus netos na vida, o que vão fazer. Há um conceito que estamos a testar na Polónia há alguns anos que eu estou convencido que vai ser um conceito internacional. Gostava de ver isso. Mas é mais coisas deste género. Estou há um ano em casa, mas estou bem. É onde o casamento é importante. Eu e a minha mulher estamos bem hoje como estávamos há 20 anos.

Se tivesse de se definir a si próprio com uma só palavra qual seria?
Isso é difícil. Olhe, vou dar uma resposta que me foi dada por um quadro. Estava a fazer uma avaliação e eu dizia-lhe ‘sou muito rigoroso, não é? muito chato’ E ele diz: “Não, o senhor é imprevisível”. Imprevisível.

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