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O cardeal alemão Reinhard Marx pediu a renúncia ao cargo de arcebispo de Munique

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O cardeal alemão Reinhard Marx pediu a renúncia ao cargo de arcebispo de Munique

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Ato de fé ou manobra política? A demissão-surpresa de um cardeal que quis assumir as culpas da Igreja

Não pendem sobre ele acusações de abuso, mas o cardeal Reinhard Marx decidiu renunciar ao cargo para assumir as culpas da Igreja. O Papa Francisco recusou — mas a história é mais complexa.

Em fevereiro de 2019, quando o Papa Francisco chamou os líderes católicos de todo o mundo ao Vaticano para uma cimeira global sobre a crise dos abusos sexuais de menores, o cardeal Reinhard Marx, à época presidente da conferência episcopal da Alemanha, era um dos oradores mais aguardados.

Embora a cimeira tivesse sido convocada após um ano de crise global, que incluiu a polémica viagem de Francisco ao Chile, a divulgação do relatório da Pensilvânia e a demissão sem precedentes do cardeal Theodore McCarrick, o caso alemão também era um dos escândalos centrais da crise. Em setembro de 2018, um relatório encomendado pela conferência episcopal alemã trouxera a público estatísticas devastadoras: entre 1946 e 2014, havia registo de pelo menos 3.776 casos de abuso sexual de menores cometidos por pelo menos 1.670 membros do clero católico daquele país.

O líder dos bispos alemães, que não foi pessoalmente implicado em nenhum erro na gestão do escândalo dos abusos, viria a fazer um dos discursos mais contundentes de toda a cimeira: apelou à transparência nos processos administrativos da Igreja, pediu a todos os bispos do mundo que divulguem estatísticas sobre os abusos sexuais registados e lembrou que no seu próprio país houve documentos destruídos ou manipulados que impossibilitaram que fosse feito um retrato completo do problema na Alemanha. Na mesma ocasião, Reinhard Marx defendeu que a Igreja deixasse de aplicar o segredo pontifício — o maior nível de confidencialidade nos processos eclesiásticos — aos casos de abuso, algo que o Papa Francisco viria a concretizar dez meses depois.

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Reinhard Marx não é um bispo qualquer. Na Alemanha, é arcebispo de Munique e Freising, um cargo que no passado pertenceu a Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI. No plano global, é um dos membros do C9, um restrito grupo atualmente composto por sete cardeais que aconselham o Papa Francisco nas principais decisões sobre o rumo da Igreja (e por isso entretanto rebatizado como C7). Além disso, é o coordenador do Conselho Pontifício para a Economia, um organismo criado em 2014 pelo Papa para definir políticas mais transparentes relativamente ao modo como o Vaticano gere as suas finanças. E, ademais, é uma das vozes mais respeitadas da Igreja a nível internacional — e considerado um dos principais líderes eclesiásticos da geração Francisco. Pelo meio, ainda foi presidente da conferência episcopal da União Europeia.

Fall Plenary Assembly German Bishops' Conference

Um dos principais aliados de Francisco, o cardeal Marx foi até ao ano passado o líder dos bispos alemães

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Nada faria, portanto, prever o que veio a público na última sexta-feira: Marx apresentou a demissão ao Papa Francisco com o argumento de que deveria partilhar a responsabilidade pela “catástrofe dos abusos sexuais” cometidos por clérigos.

Com apenas 67 anos de idade, Reinhard Marx chegou cedo à alta esfera da hierarquia eclesiástica e a popularidade de que goza atualmente coloca-o bem posicionado para um futuro promissor na liderança global da Igreja Católica. Há uma década que o cardeal Marx tem sido um dos bispos europeus mais empenhados na luta contra os abusos sexuais e, até agora, nunca foi pessoalmente implicado em nenhum caso — nem nos momentos em que o escândalo atingiu mais profundamente a Alemanha. Por isso, a demissão do seu cargo de arcebispo de Munique e Freising apanhou o universo católico de surpresa. E, embora o Papa Francisco já tenha vindo recusar a resignação de Marx, o que é certo é que ela marcou a agenda da Igreja global; há quem veja nesta decisão um modo de dar o corpo às balas e, mesmo sem culpas pessoais, assumir uma responsabilidade pelos crimes da Igreja. Porém, outros alertam para a necessidade de enquadrar a demissão no período conturbado que a Igreja alemã atravessa — e há ainda quem detete na demissão de Marx indícios de uma manobra política operada entre a Alemanha e o Vaticano para aumentar a notoriedade do cardeal e abrir caminho a um futuro de relevo na Santa Sé.

“Por me manter em silêncio, tornei-me pessoalmente culpado”

O pedido de renúncia de Reinhard Marx foi comunicado ao Papa Francisco numa carta com data de 21 de maio de 2021, tornada pública duas semanas depois.

Em bom rigor, é necessário esclarecer os termos usados na Igreja Católica. O que o cardeal Marx fez não foi exatamente demitir-se, na aceção civil do termo. Na verdade, o alemão pediu ao Papa Francisco que aceitasse a sua renúncia ao cargo de arcebispo de Munique e Freising. Trata-se de um processo a que todos os bispos estão obrigados quando completam 75 anos de idade; depois, cabe ao próprio Papa determinar se aceita a renúncia ou se pede ao bispo que permaneça no cargo durante mais algum tempo — e, habitualmente, é isso que acontece, por norma, durante cerca de dois anos. O que surpreende no caso de Reinhard Marx é precisamente o facto de o cardeal alemão ainda só ter 67 anos, o que significa que ainda era expectável que permanecesse no ativo durante pelo menos mais oito anos. Não havendo nenhum motivo de força maior (por exemplo, questões de saúde) em jogo, nada o faria prever.

Na carta que enviou ao Papa Francisco, Reinhard Marx esclarece os motivos por trás da sua decisão.

Sem dúvida, estes são tempos de crise para a Igreja na Alemanha”, começa a missiva de Marx. “Há, obviamente, muitas razões para esta situação — também além da Alemanha, em todo o mundo — e acredito que não é necessário detalhá-las aqui. Contudo, esta crise também foi causada pelas nossas próprias falhas, a nossa própria culpa. Isto tornou-se cada vez mais claro para mim ao olhar para a Igreja Católica como um todo, não apenas hoje, mas também nas últimas décadas. A minha impressão é a de que estamos num beco sem saída que, e isto é a minha esperança pascal, também tem o potencial de se tornar um ponto de viragem. Claro que a fé pascal também se aplica ao nosso cuidado pastoral enquanto bispos: quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem a perder, há de encontrá-la.”

"Esta crise também foi causada pelas nossas próprias falhas, a nossa própria culpa. Isto tornou-se cada vez mais claro para mim ao olhar para a Igreja Católica como um todo, não apenas hoje, mas também nas últimas décadas."
Cardeal Reinhard Marx

Logo no segundo parágrafo, Marx apresenta o pedido: “Desde o último ano, tenho pensado sobre isto mais cuidadosamente e tenho-me perguntado o que isto significa para mim pessoalmente, e decidi — encorajado pelo período da Páscoa — pedir-lhe que aceite a minha renúncia enquanto arcebispo de Munique e Freising.”

O cardeal alemão resume, depois, o seu raciocínio. “Na essência, é importante que eu partilhe a responsabilidade pela catástrofe dos abusos sexuais por membros da Igreja ao longo das últimas décadas. As investigações e relatórios dos últimos dez anos mostraram consistentemente que tem havido várias falhas pessoais e erros administrativos, mas também falhas institucionais ou sistémicas. Os debates recentes mostraram que alguns membros da Igreja recusam acreditar que há uma responsabilidade partilhada a este respeito e que a Igreja enquanto instituição também deve ser culpada pelo que aconteceu, e que, por isso, reprovam a discussão de reformas e renovações no contexto da crise dos abusos sexuais.”

Marx diz ter uma “opinião diferente” e considera que “ambos os aspetos devem ser considerados: os erros pelos quais somos pessoalmente responsáveis e as falhas institucionais que requerem mudanças e uma reforma da Igreja”.

“Sou padre há 42 anos e bispo há quase 25”, prossegue Marx. “É doloroso, para mim, testemunhar o grave dano causado à reputação dos bispos na perceção eclesiástica e secular, que poderá estar no seu ponto mais baixo. Para assumir a responsabilidade, não é portanto suficiente, na minha opinião, reagir apenas e exclusivamente se os documentos provarem erros e falhas dos indivíduos. Nós, enquanto bispos, temos de tornar claro que representamos também a instituição da Igreja como um todo.”

“Sinto que por me manter em silêncio, por negligenciar a ação e por me focar demasiadamente na reputação da Igreja, me tornei pessoalmente culpado e responsável”, diz o cardeal alemão, que recorda as suas próprias palavras depois da divulgação do relatório sobre os abusos na Igreja alemã. “Eu disse, na catedral de Munique, que nós falhámos. Mas quem é este ‘nós’? Na verdade, eu também pertenço a este círculo. E isso significa que tenho de tirar ilações pessoais. Isto tornou-se cada vez mais claro para mim. Acredito que uma possibilidade de expressar esta vontade de assumir a responsabilidade é a minha renúncia. Ao fazê-lo, talvez seja capaz de dar um sinal pessoal para um novo começo, um novo despertar da Igreja, não apenas na Alemanha.”

Cardinal Marx Offers Resignation To Pope Francis

O cardeal Marx na conferência de imprensa em que anunciou a renúncia

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Nomeado arcebispo de Munique e Freising em 2007, Reinhard Marx já tinha passado pelo seu próprio momento de tensão quando, em 2010, surgiram alegações de que a arquidiocese tinha permitido que um padre abusador se mantivesse em funções. O caso dizia respeito ao período em que Ratzinger liderara a diocese e agitou a Igreja Católica por colocar o próprio Papa em xeque. Na altura, o arcebispo Marx reagiu duramente, expressando uma “vergonha profunda” pelos casos conhecidos, mas afirmando que era impossível garantir que não existiam quaisquer casos e sublinhando, insistentemente, a integridade da reputação da Igreja. “Nunca haverá 100% de segurança neste momento, apenas podemos fazer 100% de esforço.”

O ano de 2010 foi um momento de viragem para a Igreja Católica na Alemanha e também para o cardeal Marx, que ao longo da última década se transformaria num dos principais combatentes contra os abusos sexuais dentro da instituição. Depois da ríspida intervenção na cimeira de 2019 contra o secretismo, Reinhard Marx passou das palavras à ação. Em 2020, criou a fundação “Spes et Salus”, uma organização destinada a apoiar vítimas de abuso sexual. O orçamento inicial da fundação, de meio milhão de euros, veio diretamente das poupanças pessoais que Marx acumulou ao longo de quatro décadas enquanto sacerdote.

Papa agradeceu coragem, mas recusou demissão

O pedido de demissão manteve-se em segredo durante duas semanas e só se tornou público quando o próprio Papa Francisco autorizou Reinhard Marx a divulgar a carta. Menos de uma semana depois dessa divulgação, o próprio líder da Igreja Católica também divulgou a carta com que respondeu ao cardeal alemão, com data de 10 de junho, e na qual rejeitou o pedido.

Antes de mais, obrigado pela tua coragem“, começa o Papa Francisco. “É uma coragem cristã que não teme a cruz, não teme humilhar-se perante a tremenda realidade do pecado.”

O Papa Francisco prossegue depois concordando que “toda a Igreja está em crise por causa do assunto dos abusos” e acrescentando que “a Igreja hoje não pode dar um passo em frente sem assumir esta crise”. “A política da avestruz não leva a lugar nenhum”, assegura. “Assumir a crise, pessoal e comunitariamente, é o único caminho fecundo porque de uma crise não se sai sozinho, mas em comunidade, e além disso devemos ter em conta que de uma crise se sai ou melhor ou pior, mas nunca igual.”

“Estou de acordo contigo em qualificar como catástrofe a triste história dos abusos sexuais e o modo de a enfrentar que a Igreja adotou até há pouco tempo”, assevera Francisco. “Nem todos querem aceitar esta realidade, mas é o único caminho, porque fazer ‘propósitos’ de mudança de vida sem ‘pôr a carne no assador’ não conduz a nada.”

Ao longo de onze parágrafos, o Papa Francisco concorda com todos os pressupostos apresentados por Marx na sua carta de renúncia. “Bem dizes na tua carta que sepultar o passado não nos leva a nada”, afirma o pontífice. “Não nos salvarão as sondagens nem o poder das instituições. Não nos salvará o prestígio da nossa Igreja que tende a dissimular os seus pecados; não nos salvará o poder do dinheiro nem a opinião dos meios de comunicação.”

A carta termina, contudo, com uma recusa categórica. Dizendo que gostou do modo como Marx terminou a sua carta de renúncia (mostrando-se disponível para se manter como sacerdote e bispo da Igreja), Francisco remata: “Esta é a minha resposta, querido irmão. Continua como o propões, mas como arcebispo de Munique e Freising. E se te vier a tentação de pensar que, ao confirmar a tua missão e ao não aceitar a tua demissão, este bispo de Roma (teu irmão que te ama) não te compreende, pensa no que sentiu Pedro diante do Senhor quando, a seu modo, lhe apresentou a renúncia: ‘Afasta-te de mim que sou um pecador’, e escuta a resposta: ‘Pastoreia as minhas ovelhas’.”

Uma Igreja em ebulição

A carta com a decisão inédita do cardeal Marx abateu-se com estrondo sobre a Igreja Católica e provocou reações a nível global. De início, de acordo com a arquidiocese de Munique, o Papa Francisco respondera apenas que o cardeal podia tornar a carta pública e pediu-lhe que se mantivesse em funções enquanto o Vaticano decidia se aceitava ou não a renúncia do alemão. O suspense dos primeiros dias adensou a dúvida e fez chover reações e análises.

Uma das principais reações do Vaticano veio do padre alemão Hans Zollner, um dos principais operacionais do Papa Francisco para a luta contra os abusos sexuais. “Foi um gesto admirável, porque foi pessoal e difícil de pôr em prática”, disse Zollner em entrevista ao jornal italiano La Repubblica. “Foi um gesto exigente perante questões delicadas e importantes, como a crise sistémica, tal como o próprio cardeal a define, da Igreja no que diz respeito aos abusos sexuais cometidos por padres contra menores. O que o cardeal Marx diz a todos é que é precisa uma nova abordagem. A crise, se é sistémica, não pode ser resolvida andando em frente como sempre se fez. É precisa uma mudança de passo.”

Zollner, que integra a Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores e foi o responsável por organizar a cimeira internacional de 2019 sobre o assunto, garante que entre Marx e o Papa Francisco “existe plena sintonia”. “Marx é membro do Conselho dos Cardeais, o ‘C7’, um homem de confiança do próprio pontífice. O que ele diz é que o caminho que Francisco está a percorrer é o correto, mas tem de ser perseguido com mais força. É a estrada que parte da cimeira sobre a pedofilia que aconteceu no Vaticano em 2019 com os bispos de todo o mundo. Nessa ocasião, o Papa falou aos bispos sobre a necessidade de assumir responsabilidades. Foi essa assunção que Marx fez ontem.”

"O que o cardeal Marx diz a todos é que é precisa uma nova abordagem. A crise, se é sistémica, não pode ser resolvida andando em frente como sempre se fez. É precisa uma mudança de passo."
Padre Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Proteção dos menores

Em Portugal, o bispo auxiliar D. Américo Aguiar, coordenador da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa, diz-se surpreendido com a decisão de Marx, que elogia, mas alerta que é preciso enquadrá-la no contexto turbulento que a Igreja Católica alemã vive por estes dias.

“Muitos de nós, que acompanham a atualidade da Igreja, fomos surpreendidos com a publicação da carta que o cardeal Marx dirigiu ao Santo Padre a pedir a resignação, sobretudo atendendo ao facto de ele ter 67 anos”, diz D. Américo Aguiar ao Observador. “Nos últimos tempos, temos acompanhado as vivências, os significados, o sentir da conferência episcopal alemã, das dioceses, da relação com outras igrejas na Alemanha. Temos acompanhado, como o Papa nos pede, com a nossa oração, esta vivência sinodal, com tropeços, dificuldades e sofrimentos.”

A decisão de Marx, no entender do bispo português, “significa uma sinalização da parte do cardeal, da sua leitura do relatório que foi feito na Alemanha no contexto da pedofilia”. “Não tendo sido ele envolvido diretamente, entende que esta decisão que toma é importante para o futuro. O que aconteceu é objetivamente feio, negro e triste. E ele considerou que aquilo que fez não foi o suficiente. Para as respostas futuras, ele considera que não faz parte. Que não é uma mais-valia para as respostas futuras por parte da Igreja alemã.”

“Respeito muito esta decisão”, continua D. Américo Aguiar. “Significa um desapego do cargo, mas também um grande carinho pela diocese. Acha que não é uma mais-valia e que outra pessoa poderá continuar”, acrescenta o bispo português, salientando que dos seus contactos com a hierarquia eclesiástica sempre recebeu a perspetiva de que “da parte do cardeal Marx tem havido um grande empenho” na luta contra os abusos.

"Não tendo sido ele envolvido diretamente, entende que esta decisão que toma é importante para o futuro. O que aconteceu é objetivamente feio, negro e triste. E ele considerou que aquilo que fez não foi o suficiente. Para as respostas futuras, ele considera que não faz parte."
D. Américo Aguiar, bispo e coordenador da Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa

Com efeito, como aponta D. Américo Aguiar, não se pode ler a decisão de Reinhard Marx apenas com base no problema dos abusos de menores. É necessário olhá-la à luz do que se passa atualmente na Igreja Católica alemã. Quando, na primeira frase da sua carta, Marx assume que “estes são tempos de crise para a Igreja na Alemanha”, não se refere apenas à questão da pedofilia — ainda que um relatório recente na diocese de Colónia tenha reacendido o escândalo dos abusos no país e colocado o cardeal conservador Rainer Maria Woelki, um dos principais bispos alemães, em xeque. A Igreja Católica alemã atravessa por esta altura um dos mais duros conflitos internos da sua história, que alguns analistas consideram ter potencial para conduzir ao grande cisma do século XXI.

Homossexuais, celibato e mulheres. Podem os bispos alemães conduzir a Igreja a um cisma do século XXI?

O conflito interno remonta a 2015, uma altura em que, ainda no início do pontificado do Papa Francisco, a Igreja Católica global começava a debater mais aprofundadamente as questões da família e se dava conta de que existia uma grande divisão entre os bispos sobre questões morais — como a possibilidade de dar a comunhão a pessoas divorciadas que voltassem a casar. Um primeiro encontro internacional em 2014 abriu portas a um sínodo global em 2015 (que daria origem ao célebre documento pontifício Amoris Laetitia, que valeria ao Papa Francisco a criação de muitos inimigos entre a ala mais conservadora da Igreja).

Já se sabe que temas como o divórcio ou a homossexualidade são de grande relevância moral para a Igreja — e são também uma das principais fontes de tensão entre as diversas correntes ideológicas que compõem as lideranças eclesiásticas por todo o mundo. A aproximação de um sínodo sobre a família num clima de evidente divisão interna levou vários bispos a pronunciarem-se de modo contundente sobre o tema. Um dos mais controversos foi, precisamente, o cardeal Reinhard Marx, à época presidente da conferência episcopal alemã. “Não somos uma filial de Roma”, disse em fevereiro de 2015 o arcebispo de Munique. “Cada conferência episcopal é responsável pelo cuidado pastoral no seu contexto cultural e tem de pregar o evangelho no seu modo próprio e original. Não podemos esperar que um Sínodo nos diga como moldar o cuidado pastoral sobre o casamento e a família aqui.”

Estava lançado o desafio. Marx, habitualmente conotado com os segmentos mais progressistas da Igreja, avisava a partir da Alemanha que as tentativas, por parte da ala mais conservadora, de endurecer a posição da instituição perante as pessoas que vivem em situações consideradas de “pecado” não seriam bem sucedidas. Expectavelmente, as palavras de Marx não foram bem recebidas nem pelos alemães mais conservadores (que o acusaram de querer “ficar bem na fotografia”) nem pelo Vaticano (de onde veio até uma acusação de propagar uma ideia “anti-católica”).

Na Alemanha, país-natal da Reforma Protestante, onde os cristãos se dividem entre católicos e luteranos, a Igreja tem sido pouco capaz de oferecer respostas sólidas aos fiéis — e as tensões dos últimos anos só agudizaram o problema. A instituição já vira a sua imagem descredibilizada na praça pública por ter deixado transparecer para o exterior uma desunião completa (e feroz) em temas intimamente relacionados com a esfera privada de cada um, incluindo o casamento, o divórcio ou a homossexualidade. Mas o relatório sobre os abusos sexuais publicado em 2018 foi a gota de água. Quando o documento foi divulgado, o cardeal Reinhard Marx, que se mantinha como líder dos bispos alemães, considerou-o como um “ponto de inflexão” para a Igreja e declarou: “Muitas pessoas já não acreditam em nós”. O impacto do relatório traduziu-se em números concretos: só em 2018, mais de 200 mil fiéis alemães abandonaram a Igreja.

Extraordinary Consistory On the Themes of Family Is Held At Vatican

O cardeal Marx, um dos artífices do "Caminho Sinodal" na Alemanha, poderá estar de saída de Munique — mas não do Vaticano

Getty Images

Foi este contexto conturbado de uma Igreja em crise que levou os bispos alemães, sob a liderança de Reinhard Marx, a lançar o “Caminho Sinodal”, um projeto de renovação da Igreja que passa, na essência, por um conjunto de conferências para implementar novos processos internos. Inspirado no modelo do Sínodo dos Bispos, o “Caminho Sinodal” inclui não apenas bispos e padres, mas também representantes dos fiéis — e não escondeu, desde o início, alguns dos tópicos que estariam no centro das discussões: o celibato dos padres, a moral sexual, o poder dos padres e o lugar das mulheres na Igreja. Inicialmente pensado como modo de reaproximar a instituição dos fiéis cada vez mais descrentes, o próprio “Caminho Sinodal” tornou-se no centro da controvérsia eclesiástica alemã quando Reinhard Marx disse publicamente que as decisões do processo de debate seriam vinculativas.

O anúncio foi mal recebido no Vaticano. O próprio Papa Francisco escreveu aos alemães pedindo-lhes que evitassem tentações de reformas a solo e a estrutura da Santa Sé alertou o cardeal Marx para o facto de os planos para aquele processo serem “eclesiologicamente inválidos”. A crise aprofundou-se ao ponto de Reinhard Marx ter de voar de urgência para Roma para se encontrar com elementos de topo da Santa Sé e para, pelo menos temporariamente, serenar os ânimos — descansando o Vaticano com a confirmação de que todos os resultados das discussões seriam partilhados com a liderança global da Igreja.

Todavia, em vez de contribuir para a unidade entre católicos, o “Caminho Sinodal” só aprofundou divisões. Os mais progressistas viram no processo uma oportunidade para colocar em cima da mesa temas controversos e avanços que ainda parecem longe do caminho da Igreja global — como a aceitação da homossexualidade no contexto eclesiástico. Já os mais conservadores acabaram por se radicalizar ainda mais em oposição a estas ideias. O processo, que começou em 2019 e deveria acabar este ano, vai prolongar-se devido à pandemia da Covid-19, mas já deu origem a momentos de grande tensão que ameaçam resultar numa profunda divisão da Igreja na Alemanha: por exemplo, quando, em maio deste ano, um conjunto de padres abençoou dezenas de casais homossexuais por todo o país, depois de o Vaticano o ter considerado ilícito.

De todo o universo católico choveram críticas ao modo como a Igreja Católica alemã tem gerido o seu debate interno — e avisos: pode estar em causa um verdadeiro cisma contemporâneo. E o cardeal Reinhard Marx, que esteve demissionário durante quase um mês, é uma das figuras centrais de todo o processo.

De olho no Vaticano?

Se há quem veja na decisão de Marx uma vontade genuína de assumir responsabilidades pelos pecados da Igreja ou então um resultado de um processo conturbado de uma Igreja alemã em crise, há também quem não resista a encontrar na renúncia do cardeal indícios de um facto pouco surpreendente: o de que o Vaticano não se move apenas nos círculos espirituais, mas também aposta frequentemente em manobras políticas e em jogadas de poder.

No jornal especializado Crux, o analista norte-americano John Allen Jr. sublinha que o pedido de renúncia de Marx “não significa que a sua carreira tenha acabado; na verdade, o capítulo mais significativo pode ainda estar para vir”. Num texto em que apela à racionalidade na análise do caso de Marx, Allen sublinha que o alemão “é visto como um ativo central para o pontificado de Francisco” e dá um exemplo: “Quando o Papa Francisco disse a Marx que podia tornar a carta de renúncia pública, também lhe disse que queria que Marx continuasse em funções até que ele decidisse o que fazer”.

“Marx tem sido um apoiante-chave de várias das iniciativas de Francisco, incluindo a abertura da comunhão aos crentes divorciados que voltaram a casar”, explica Allen. “Além disso, ele tem sido visto, há muito tempo, como um líder dos esforços de reforma nos escândalos do abuso sexual.”

"É completamente possível que o Papa Francisco decida aceitar a renúncia de Marx de Munique, para que tudo isto não pareça apenas uma jogada política em vez de um ato genuíno de consciência."
John Allen Jr., jornalista e analista do Vaticano

Para o analista americano, era “completamente possível”, mas nada certo “que o Papa Francisco decida aceitar a renúncia de Marx de Munique, para que tudo isto não pareça apenas uma jogada política em vez de um ato genuíno de consciência”. Contudo, mesmo se tal acontecesse, a única coisa que mudava é que o cardeal deixaria de ser arcebispo de Munique — mantendo-se como cardeal e em todas as funções que exerce no Vaticano. Até poderia ser precisamente esse o objetivo de Marx, avisa Allen. “Marx já foi apontado para vários lugares importantes no Vaticano ao longo dos anos, por isso aliviá-lo dos seus deveres em Munique também abriria o caminho para que isso acontecesse”, escreve o americano. “Por exemplo, na terça-feira o cardeal canadiano Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, vai completar 77 anos, ou seja, dois anos após a idade técnica da reforma, de 75 anos. Com apenas 67 anos, Marx poderia entrar para esse lugar durante a próxima década e iria, sem dúvida, supervisionar a nomeação de toda uma geração de ‘bispos de Francisco’ em todo o mundo.”

A mediática renúncia, porém, acabaria por ser rejeitada por decisão do Papa Francisco, confirmando aquilo que já parecia certo mesmo quando havia dúvidas sobre o desfecho do caso: Reinhard Marx, um dos cardeais de topo da Igreja Católica do século XXI, está longe de ter saído de cena. Pelo contrário, a demissão-surpresa, quer seja um ato genuíno de assunção de responsabilidades, uma manobra táctica ou um misto dos dois, só reforçou a sua relevância mediática e o seu lugar no circuito do poder do Vaticano.

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