Discurso de António Costa

Intervenção na tomada de posse do XXIII Governo

Recordadas hoje, essas palavras parecem premonitórias do que iríamos ter de enfrentar com a terrível pandemia que dois meses depois começou a dominar o Mundo e que também nos atingiu duramente”.

António Costa começou a intervenção de 2022 pela de 2019 em que disse que tinha ali um Governo (o que agora cessa funções) “para os bons e para os maus momentos. (…) E quanto maior for a tormenta, maior será a nossa determinação em ultrapassá-la.” É esta a frase que o primeiro-ministro diz agora, depois de uma “terrível pandemia” que surgiu pouco depois dessa tomada de posse, ser “premonitória”, servindo também a sua intenção de sublinhar as conquistas desse Executivo. Foi a partir daqui que desfiou a fidelidade aos “grandes objetivos estratégicos” que tinha no programa de 2019, mesmo com a tal “tormenta”. À cabeça colocou medidas/conquistas escolhidas a dedo: uma no ambiente (o encerramento das centrais a carvão), outra na Educação (a redução em 5,9% do abandono escolar), outras duas sociais/económicas (o saldo migratório positivo e as menos 354 mil pessoas em risco de pobreza em comparação com 2015). 

Estes não foram só anos de combate às crises que tivemos de enfrentar. Foram também anos de reformas profundas que mudaram estruturalmente a sociedade e economia. Fazer reformas não significa promover manifestações mas resolver problemas estruturais”

Mais uma deixa para atirar nova leva de exemplos de obra feita, agora na área das qualificações e da ciência. Com uma tirada que não estava na intervenção escrita, mas que António Costa acrescentou à última sobre a ineficácia de manifestações quando se quer “fazer reformas”. No último Governo dependia de um apoio parlamentar à esquerda, nomeadamente do PCP e Bloco de Esquerda, que acabou por sair furado com o chumbo do Orçamento para 2022, a dois anos do fim do mandato. Costa não referiu esses tempos e esses parceiros por uma única vez nesta intervenção, passou ao lado de seis anos de encosto do PS à esquerda e, ao falar do passado, apenas anotou que não é dos protestos de rua (tantas vezes associados ou com ligações a esses partidos) que saem as reformas. Ele que foi tão criticado pela oposição por não as ter feito a fundo por estar demasiado condicionado pelo apoio parlamentar de que dependia.

Desta vez, a tormenta não nos dá sequer dois meses de estado de graça. Não é otimismo, senhor Presidente, é a realidade (…) A guerra, não o escondamos, acrescenta um enormíssimo fator de incerteza às nossas vidas, à nossa economia familiar, à saúde das nossas empresas e, por isso, aos nossos empregos.

Já faz parte da história desta relação institucional a ideia de Marcelo Rebelo de Sousa sobre Costa, o “otimista irritante”. Desta vez é sem esse otimismo que o primeiro-ministro avança, convencido que o estado de graça deste Governo já é passado — terá ocorrido algures entre a noite eleitoral e o começo da guerra na Ucrânia, perdido naquele longo interregno em que tiveram de ser repetidas as eleições no círculo da Europa. Dois meses depois de conquistar uma surpreendente — até para os socialistas — maioria absoluta, António Costa já avisa que muito que tem de ser reequacionado à luz dos acontecimentos recentes. Avisa sem cerimónia que a guerra traz “um enormíssimo fator de incerteza” com impacto generalizado. Na intervenção anunciou que o Orçamento do Estado para 2022 está pronto e é certo e sabido que traz previsões macroecomómicas revistas face ao que estava no OE chumbado no final do ano passado, ainda antes da guerra e de tudo o que ela implica: “agrava a pressão inflacionista”, provocada pela “rutura das cadeias de produção durante a pandemia e um mercado de energia disfuncional”. Eis os dois principais problemas económicos e sociais que este Governo terá pela frente no imediato e que estragam o plano eleitoral da recuperação pura e simples prometida por Costa, apoiada no extra de fundos comunitários vindos do Plano de Recuperação e Resiliência.

Mais uma vez, também, precisamos, a nível nacional e europeu, de adotar as medidas de resposta a este choque adverso, em especial, assegurando que não há ruturas no abastecimento, controlando o custo da energia e de matérias primas essenciais, apoiando as empresas mais atingidas e as famílias mais vulneráveis”

O anterior Governo ainda apresentou medidas de apoio à economia para responder aos impactos da guerra, mas fica para o novo a parte mais pesada já que ainda está por se saber se chega ou não aprovação da Comissão Europeia para responder ao aumento dos combustíveis através de uma redução do IVA. O pedido está feito, mas a resposta tarda e em Espanha já estão a avançar outras medidas com um plano de choque no valor de 6 mil milhões de euros, pelo que a pressão está a aumentar do lado de cá. Com Espanha, Portugal conseguiu noutra frente avançar numa proposta para limitar o preço do gás usado para produzir eletricidade, travando os preços grossistas do mercado ibérico de eletricidade. O que Costa faz agora neste capítulo é prometer que não vai “ficar em terra” e que vai “resolver problemas”. O como fica para depois, já que Costa não avançou com nenhuma proposta concreta para além das intenções que já são conhecidas em algumas das matérias que referiu: combustíveis, energia e matérias primas essenciais. Durante a intervenção

Já amanhã aprovaremos formalmente em Conselho de Ministros [o programa de Governo] para que na próxima semana o possamos discutir no local próprio, a Assembleia da República (…) Temos pronta a proposta de Orçamento do Estado para este ano, honrando os compromissos assumidos, como o aumento extraordinário de pensões com efeitos retroativos, a redução do IRS para a classe média ou o início da gratuitidade das creches”

É agenda pura e dura, mas tem importância política e revela urgência em avançar. Foram dois meses de espera, depois de um debate intenso para a marcação de eleições onde todos os partidos defenderam que já que a antecipação das legislativas tinha de acontecer, então que acontecesse o quanto antes (salvo raríssimas exceções, na altura mais concentradas na luta interna do PSD). Recorde-se que nesse tempo uma das referências feita era sempre ao Orçamento do Estado e a necessidade que surgisse o quanto antes, sobretudo por parte do Presidente da República que fazia contas a que pudesse estar pronto em abril. Ora, o país chegou praticamente a abril sem sequer ter um novo Governo em funções, já que teve de esperar pela repetição de eleições no círculo da Europa, pelo que o calendário que Marcelo desejava foi adiado. Agora, Costa promete ter já os três documentos fundamentais a postos: o Programa do Governo é aprovado no Conselho de Ministros destas quinta-feira; o Programa de Estabilidade está feito; o Orçamento do Estado para 2022 está pronto. Para o primeiro promete uma cópia no seu programa eleitoral, para o segundo “equilíbrio orçamental” e investimento social, na economia e no ambiente e, para o último, a concretização das medidas que constavam daquele que foi chumbado.

Portugal tem hoje as condições de que nunca dispôs para virar a página para um novo ciclo de desenvolvimento sustentável e inclusivo. Um novo ciclo de desenvolvimento com uma economia que produz maior valor acrescentado e com mais justa repartição desse valor com os trabalhadores.”

“Condições únicas” ou “oportunidade única” foi assim que António Costa chamou ao envelope financeiro que virá de uma vez de Bruxelas, juntando os fundos do quadro plurianual e os do Plano de Recuperação e Resiliência. A fasquia está elevada e foi vendida sem pudor em mais do que uma campanha eleitoral — as autárquicas foram a primeira frente em que Costa apostou nesta linha para apelar ao voto em quem tinha a mão na massa — e agora com maioria absoluta, o nível de exigência para o PS sobe ainda mais. Marcelo Rebelo de Sousa avisou mais uma vez lembrando mesmo que Costa terá de dar “passos mais vigorosos” e fazer uma “rigorosa” aplicação dos fundos que possa “significar que filho ou neto de pobre não esteja condenado a ser pobre e filho ou neto do interior não esteja condenado a emigrar e filho ou neto de quem vive nas regiões autónomas tenha de lá viver”. Curiosamente, neste mesmo ponto, também António Costa falou nos “filhos e netos” e nas exigências que colocam nesta fase, chamando-os à participação na vida democrática que, na sala dos Embaixadores do Palácio Nacional da Ajuda onde decorreu a posse, estiveram representados por uma criança que, na campanha em Setúbal, lhe pediu para estar ali hoje.

Os portugueses resolveram nas eleições a crise política e garantiram estabilidade — como bem referiu o Presidente da República — até outubro de 2026. Estabilidade não é sinónimo de imobilismo, é sim, exigência de ambição e oportunidade de concretização”

Quem ouviu o discurso de Marcelo Rebelo de Sousa não teve grande dificuldade em adivinhar que o aviso à necessidade de Costa se manter até ao final do mandato ficaria na história desta tomada de posse. O primeiro-ministro não foi exceção. Já trazia a frase escrita e, quando a leu, acrescentou um dedicado “como bem referiu o Presidente da República. Mas a frase não encerra em si uma garantia plena de permanência como primeiro-ministro até 2026. Fala em “estabilidade até outubro de 2026”, o que dificilmente se compaginaria com uma saída a meio do mandato do primeiro-ministro para ocupar funções em Bruxelas — como é tantas vezes colado às ambições de António Costa sem que o próprio desminta. Mas não garantiu ficar, pelo menos com a mesma clareza com que Marcelo lhe arrefeceu eventuais ambições. A maioria prenderá Costa ao país até ao final do mandato? Será uma das questões que promete marcar presença nestes anos até à mudança de ciclo na União Europeia, o que acontecerá em 2024.

A maioria absoluta que nos foi concedida não significa poder absoluto. Nunca o poderia constituir e muito menos eu o poderia interpretar. Faço parte de uma geração que se bateu contra uma maioria existente, que tantas vezes se confundiu com um poder absoluto

A frase não era nova, já todos os portugueses a tinham ouvida em jeito de promessa na noite da vitória eleitoral socialista em que António Costa prometeu que não exerceria o “poder absoluto”. Agora decidiu explicar o que entende por “poder absoluto” e isso leva-nos às maiorias de Cavaco Silva. Não estava escrito, mas António Costa desta vez decidiu fazer uma dedicatória quando falou no que quer evitar, no que para si é um mau exemplo de maioria absoluta e esse é o de Cavaco Silva, que teve este conforto entre 1987 e 1995. António Costa assumiu pela primeira vez funções de Governo precisamente com o primeiro-ministro que se seguiu a Cavaco, no centro político de António Guterres, e coloca-se agora na “geração que se bateu contra uma maioria existente”.  Entretanto foi número dois, durante dois anos, de um Governo de maioria absoluta do PS (liderado por José Sócrates” e agora, na sua própria maioria quer “diálogo parlamentar, político e social”. Não há registo de um primeiro-ministro que na posse de uma maioria tenha dito o contrário. Como diria Jerónimo de Sousa, “a melhor prova do pudim é comê-lo”.

Os portugueses podem contar com normalidade constitucional e a continuidade da saudável cooperação e solidariedade institucional, que tanto têm apreciado e que são um inestimável contributo para o reforço das instituições democráticas e o prestígio de Portugal no exterior”

É aquela frase que aparece quase em forma de desejo. Aqui António costa só pdoe falar pela sua parte e a “solidariedade institucional” faz-se de dois lados — e o do Presidente da República deu sinais de endurecimento no discurso desta tomada de posse. Foi depois de o ouvir que António Costa sublinhou, já mesmo no final da sua intervenção, o “inestimável contributo” para as instituições democráticas da “saudável cooperação e solidariedade institucional” entre si mesmo e o atual Presidente da República. É um aviso misturado de desejos misturado de aviso. E por aí fora.