Um momento de campanha no Saldanha, em Lisboa, passou quase despercebido mas cruza na perfeição a relação simbólica de três líderes da Iniciativa Liberal (IL): o atual, Rui Rocha, a tentar fazer pela vida com todas as suas forças e fraquezas numa corrida contra o tempo; o anterior, o carismático João Cotrim Figueiredo, a mostrar o seu sentido de oportunidade mas a não querer de todo ofuscar o atual presidente; e o anunciado futuro presidente, Bernardo Blanco, 28 anos, cabeça de lista da IL por Lisboa, com a sua capacidade de chegar aos jovens.
Vamos contar em câmara lenta, para tentar que não escape nenhum detalhe. Bernardo Blanco fura entre dezenas de simpatizantes do partido com bandeirinhas azuis até chegar perto do líder, que está a prestar declarações rodeado por uns 20 jornalistas, para o avisar de que tem ali um jovem indeciso entre a AD e a IL: Martim, 23 anos, consultor de tecnologia, blazer impecável — esteticamente passaria por liberal em qualquer arruada.
Aproveitando a atenção das câmaras e microfones, Rui Rocha saca de um tablet, passa-o ao jovem indeciso e desafia-o: “Vamos fazer uma simulação, não ponhas o teu salário, põe o de alguém que tu conheças, não digas o nome.” Após alguma atrapalhação do rapaz, que leva Rui Rocha a pedir ajuda (“quem é o especialista do tablet?”), surge o resultado esperado para um salário de 1.600 euros brutos, anunciado pelo presidente da IL em tom de comício: “Agora tens o imposto que pagas com o PS: 237 euros. Com a IL, seriam 127 euros. Já agora o PSD não está aí, mas terias um alívio de 6 euros por mês, 20 cêntimos por dia.”
Martim faz um ar semi-rendido, sem se comprometer: “Não posso declarar onde vou votar, mas cem euros faz diferença mesmo.” Rui Rocha agradece ao jovem de blazer e despede-se dele, mas João Cotrim de Figueiredo vai espontaneamente atrás do eleitor indeciso para descobrir se trabalhou fora do país ou estava a pensar emigrar — e ele até já tinha estado em Londres. “Voltaste porquê?”, pergunta o ex-líder. “Porque gosto de viver em Portugal, não é pelas vantagens financeiras, não”, responde Martim. Não é seguramente intencional, mas Cotrim provoca um ligeiro desvio das atenções que estavam centradas no líder. E subtilmente mostra que Rui Rocha podia ter continuado a conversa mais um bocadinho até fazer este ponto.
Cotrim: “O Rui tem total capacidade para ter resultados muito melhores que os meus”
João Cotrim de Figueiredo despede-se afetuosamente (“Martim, foi um gosto”) e fica com os microfones à sua frente, dos jornalistas que continuaram a seguir o diálogo do ex-líder. As declarações são irrepreensíveis no objetivo de não ofuscar minimamente Rui Rocha e Cotrim até puxa pelo sucessor em comparação consigo próprio: “Acho que o Rui tem total capacidade para fazer esta campanha com resultados muito melhores do que os meus”.
Defende o tipo de campanha feita pelo partido, relativizando a falta de arruadas e enaltecendo o frenetismo da IL nas redes sociais e nas entrevistas a podcasts, “que chegam a muito mais gente”, frisa. Diz que não tem saudades de fazer campanha eleitoral, apesar de a seguir ainda ter a das europeias, onde é o cabeça de lista da IL: “É a vida que escolhi, não me vou queixar”.
Recusa traçar já objetivos para as eleições de 9 de junho: “Se uma semana em política é uma eternidade, três meses então…” E em coerência com essa imprevisibilidade da política, mas também com a confiança que tem nos resultados, responde assim à pergunta que traduz o maior pesadelo eleitoral da IL, se as coisas correrem muito mal e o partido fraquejar em Braga, onde apenas elegeu um deputado:
— Se Rui Rocha não for eleito em Braga, admite voltar à liderança da Iniciativa Liberal?
— Não ponho esse cenário.
Este momento é um ligeiro desvio ao guião da arruada no centro de Lisboa, que visa sempre pôr o foco em Rui Rocha, e inclui uma passagem no seu restaurante preferido, “O Moisés”, e uma conversa com os empregados a elogiar as carnes.
Esta sexta-feira, na visita à Bolsa de Turismo de Lisboa, quando perguntaram a Rui Rocha quem é que gostava de mandar de viagem para um país distante sem retorno, a resposta do líder liberal saiu algo inesperada: “Gostaria de enviar o João Cotrim de Figueiredo, para Bruxelas…”. E depois justificou: “Sem retorno no sentido em que depois ele regressa quando quiser quando for deputado europeu. Não temos de ser nós a tratar disso, ele depois gere isso.”
Rui Rocha: “O Bernardo é fundamental para o resultado que queremos ter em Lisboa”
Voltando ao jovem indeciso do blazer arregimentado por Bernardo Blanco na ação de campanha do Saldanha: esta facilidade de contacto com a geração dos 20 anos é um dos pontos fortes do cabeça de lista da IL por Lisboa, evidenciado de forma ainda mais clara no dia seguinte, numa ação de campanha na Cidade Universitária.
Primeiro entra em ação o presidente: Rui Rocha é afável a cumprimentar os estudantes, tenta fazer piadas com todos, mas em certos momentos parece ter receio de estar a ser intrusivo, hesita na decisão dos que deve abordar, e muitas vezes não desenvolve as conversas até ao apelo ao voto na IL. É uma campanha para ser visto de forma simpática, tentando não correr grandes riscos. (Na Bolsa de Turismo de Lisboa, esta sexta-feira, teve à sua frente dois jovens que se assumiram indecisos entre a AD e a Iniciativa Liberal, numa clara assistência para um golo político a tentar pelo menos convencê-los, mas Rui Rocha preferiu mais uma vez não rematar, despedindo-se educadamente).
A parte final da ação de campanha na Cidade Universitária é liderada por Bernardo Blanco, que inicia as abordagens perante o olhar do líder e procura ser mais eficaz a debitar frases de efeito para convencer os estudantes a votarem na IL, mas sempre com o cuidado de apresentar Rui Rocha e o envolver no fim das conversas. Consegue usar mais empatia a falar com eleitores da sua idade, usa expressões como “a nossa geração” para criar maior identificação e prolonga mais os diálogos — é tudo um risco, claro, nunca se sabe quando sai uma resposta politicamente embaraçosa de um eleitor frente às câmaras de televisão.
Faz analogias entre o futebol e a política a falar com um adepto do Sporting antes do derby: “Se o Sporting jogasse mal mudavas de treinador? Portugal nos últimos 8 anos foi ultrapassado por 4 países da Europa. O que fazíamos se o clube caísse de divisão?” Resposta esperada: “Provavelmente mudava de treinador.” Blanco não lhe arranca uma assunção de voto, mas o jovem sportinguista diz que está indeciso, o que já não é mau neste contexto. Outros assumem que vão votar IL, enquanto Bernardo Blanco os trata por “pá”. Rui Rocha agradece e dá-lhes um abraço.
Blanco já foi anunciado por João Cotrim de Figueiredo numa convenção como “futuro presidente da Iniciativa Liberal”, arrancando uma ovação da sala. Rui Rocha não desdiz o seu antecessor sobre o possível sucessor e elogia-o: “O Bernardo é cabeça de lista por Lisboa, é fundamental para o resultado que queremos ter em Lisboa, tem feito um trabalho extraordinário no parlamento, lembro por exemplo a comissão de inquérito à TAP”.
Quanto à futura liderança de Bernardo Blanco, é cedo, claro, diz o atual líder: “Há muitos membros da Iniciativa Liberal com esse potencial e o Bernardo tem obviamente uma enorme competência, portanto é uma questão do tempo, e da decisão dele e da decisão dos membros da IL”, diz Rui Rocha ao Observador.
Blanco: “É praticamente impossível Rui Rocha não ser eleito por Braga”
O próprio Bernardo Blanco sabe que falta muito e não é hora para aprofundar estas conversas. Nem quer pensar na hipótese de Rui Rocha não ser eleito por Braga, o que repetiria a situação de 2019, em que o então líder, Carlos Guimarães Pinto, ficou fora do Parlamento e a presidência do partido foi transferida para o então deputado único João Cotrim de Figueiredo.
“Diria que esse cenário é praticamente impossível. Louvo a coragem do Rui de se candidatar pelo seu distrito, ao contrário da maioria dos líderes partidários que não tiveram essa coragem. Estou tranquilo enquanto cabeça de lista por Lisboa. Depois do dia 10 de março veremos, mas não tenho intenções nenhumas de me candidatar a nada internamente”, afirma ao Observador.
Como líder da lista por Lisboa, partilha responsabilidades na decisão de oferecer a Carla Castro um lugar entre quinta e sétima na lista, proposta que acabou por consumar a ruptura com a ex-candidata a presidente do partido.
— Participou na decisão?
— Foi uma decisão da comissão executiva, já tomada há 3 ou 4 meses.
— Sente falta de Carla Castro na campanha?
— A campanha tem as pessoas candidatas e as do partido que se querem juntar.
— Mas acha que foi um assunto bem resolvido pelo partido?
— Foi uma decisão de vários órgãos do partido. O que tem impacto é a prestação dos líderes partidários. Ainda há muitas pessoas que nem conhecem o Rui Rocha, vão conhecendo agora.
— Voltou a falar com Carla Castro depois disso?
— Boa questão. Desde a decisão falámos algumas vezes fisicamente no Parlamento. Agora estamos a trabalhar para ter um grande resultado para mudar o país. Há muitas pessoas com quem posso falar depois das eleições, mas agora estou focado na campanha. Mal vejo a minha família, quanto mais…
Bernardo Blanco tem sido um dos elementos mais ativos do núcleo duro da IL na preparação da campanha e mais ainda ao longo da maratona de debates televisivos, em que chegou a simular o papel dos outros líderes partidários em ensaios perante Rui Rocha. “Estive na equipa de preparação de debates com o Rui. Juntam-se os principais argumentos, faz-se a lista de argumentos do outro lado, fizemos algumas simulações do outro lado nos debates e simulei vários dos líderes”, desvenda.
Convidado a comparar as lideranças de João Cotrim de Figueiredo e Rui Rocha, Bernardo Blanco responde: “Não tenho grandes ídolos. Gosto muito dos dois. O Rui tem certas características. O João quando saiu queria que a IL se expandisse, se deslocasse de uma certa imagem. O Rui é muito competente, sabe muito bem os dossiês. Nos debates criou uma imagem completamente diferente da que tinha sido criada pelos comentadores”.
O teste do elevador para a reunião com Vasco de Mello
Outra imagem simbólica sobre liderança é o teste do elevador. Quem é que entra e quem é que fica de fora, quando não cabe toda a gente, para subir dois pisos até à reunião com Vasco de Mello, herdeiro da CUF, presidente da Brisa e da José de Mello e líder da associação que representa as 40 maiores empresas portuguesas — passam os três e seguem à frente: o atual, o ex e um dos futuros líderes.
Uma hora depois, quando termina o encontra e Vasco de Mello acompanha a comitiva da IL à porta, o último a despedir-se, de forma mais demorada, é Cotrim de Figueiredo, o que indicia uma relação de maior confiança, dos tempos em que era líder e da carreira profissional antes disso.
Voltando ao teste do elevador, a imagem confirma que João Cotrim de Figueiredo conserva um estatuto à parte e prenuncia que Bernardo Blanco vai a caminho disso. Além de estarem na política por convicção e não darem sinais de quebra de solidariedade, nenhum dos dois tem seguramente qualquer interesse pessoal em que as coisas não corram bem a Rui Rocha e à Iniciativa Liberal. Blanco porque ainda é cedo para o futuro nos seus 28 anos; Cotrim porque se algo correr mal todos vão lembrar a forma inesperada como saiu da liderança um ano depois das eleições.