Num ano em que os filmes de super-heróis parecem ter finalmente começado a perder o fôlego, e obras totalmente opostas como Oppenheimer e Barbie dominaram as bilheteiras globais, esta lista dos melhores filmes que se estrearam em Portugal em 2023 é o mais aberta e eclética possível. Abrange superproduções como Missão: Impossível — Ajuste de Contas (Parte Um), em que Tom Cruise mantém vivo o verdadeiro espírito do grande filme de ação de Hollywood, e títulos dos Óscares, como Os Espíritos de Inisherin, de Martin McDonagh, e Tár, de Todd Field; fitas europeias de dimensões mais discretas, caso da irlandesa The Quiet Girl — A Menina Silenciosa, As Oito Montanhas, realizada na Itália pelos belgas Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, EO, do octogenário polaco Jerzy Skolimovski, e Great Yarmouth: Provisional Figures, que o português Marco Martins rodou em Inglaterra. Ou ainda a animação de longa-metragem nipónica Suzume, de Makoto Shinkai, e filmes do seu compatriota Hirokazu Kore-eda ou do iraniano Jafar Panahi. Eis os 12 eleitos por Eurico de Barros.

Broker — Intermediários
De Hirokazu Kore-eda

O realizador japonês foi à Coreia do Sul rodar este filme em que continua a labutar sobre os temas da maternidade e da paternidade, da filiação e do que é que constitui uma família. Dois sujeitos que desviam crianças abandonadas numa igreja e a mãe de um dos bebés atravessam o país, acompanhados por um miúdo órfão, em busca de um casal que compre a criança. E são seguidos por dois polícias que os querem prender em flagrante. Kore-eda descobre humanidade e atenuantes insuspeitadas em personagens à primeira vista desprezíveis e sem redenção, conseguindo abordar um tema tão delicado e tão sério de vários ângulos e sem escolher lados nem fazer juízos morais, comovendo-nos sem lançar mão de facilidades piegas. Ele quer deixar bem claro que cada nascimento e cada nova vida são importantes, e merecem o melhor que lhes possa ser dado.

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Ursos Não Há
De Jafar Panahi

Apesar de estar proibido de trabalhar pelas autoridades iranianas, Jafar Panahi tem continuado a filmar clandestinamente aproveitando a miniaturização e a portabilidade das câmaras digitais. Ursos Não Há é o último destes filmes feito antes do seu encarceramento. E é mais uma autoficção encostada à realidade em que Panahi interpreta um cineasta com o seu nome, que alugou uma casa numa aldeola perto da fronteira da Turquia, para daí dirigir a equipa que está numa cidade a poucos quilómetros dali a fazer uma fita. Ao mesmo tempo que lida com os problemas de rodar à distância, Panahi envolve-se numa questão local, ao fotografar um casal de namorados cujo romance é clandestino. Ursos Não Há é clarinho, clarinho na sua complexidade formal, e apesar dos constrangimentos da rodagem, do clima de intolerância, suspeição e temor envolvente, e da sensação de que se atingiu o limite do suportável, o olhar generoso, humano e responsável de Jafar Panahi volta a impor-se. O realizador está agora preso, mas o seu cinema continua a circular livremente.

Os Espíritos de Inisherin
De Martin McDonagh

O dramaturgo, argumentista e realizador anglo-irlandês Martin McDonagh volta a juntar aqui os seus dois intérpretes de Em Bruges (2008), Colin Farrell e Brendan Gleeson. Eles são dois grandes amigos, Pádraic e Colm, que vivem na ilha (fictícia) do título nos anos 20 do século passado, situada ao largo da Irlanda, e bebem muita cerveja, olham para o mar e têm conversas banais. Isto até ao dia em que Pádraic chega ao “pub” local às 14.00 da tarde, como sempre, vai beber uma cerveja com Colm, que já lá está, e este lhe diz, secamente e sem justificação, que já não gosta dele e que deixaram de ser amigos. Parte drama de fundo existencial ancorado na realidade, com um humor muito negro e violento e uma sugestão de conto de fadas, parte alegoria sobre a contínua e absurda conflitualidade entre irlandeses (ver a Guerra Civil que se manifesta em fundo, lá no continente, de vez em quando), Os Espíritos de Inisherin é uma pérola cinematográfica rara e extravagante, onde Farrell e Gleeson fazem uma espécie de versão irlandesa, rústica, desavinda e trágicómica de Bucha e Estica.

Tár
De Todd Field

Lydia Tár (Cate Blanchett) diz coisas como “É tão ridículo chamar ‘maestrina’ a uma mulher maestro como ‘astronete’ a uma mulher astronauta”, e arrasa, numa aula, um aluno que não gosta de Bach por razões ideológicas. Ela tem a batuta da Orquestra Sinfónica de Berlim, prepara uma nova gravação da 5ª Sinfonia de Mahler, vai lançar a sua autobiografia e tutela um programa de bolsas para mulheres que querem serem maestros. É lésbica e casada com a primeiro violino da orquestra que dirige. Juntas têm uma filha adotiva etnicamente correta. Tár parece invulnerável ao “wokismo”. Só que tudo o que construiu vai ser posto em causa quando uma ex-assistente e pupila se suicida e ela vê-se acusada de ser uma predadora sexual. Contando com uma interpretação intocável de Cate Blanchett, Todd Field fez um filme sobre o poder, a forma como também no meio artístico se pode abusar dele e exercê-lo despoticamente, e a separação entre o artista e o seu comportamento e a sua arte. E que tem ainda a grande qualidade de ser o primeiro a encarar com frontalidade a “cultura do cancelamento” e a forma como arruína vidas, carreiras e reputações.

EO
De Jerzy Skolimowski

O EO do título desta fita do octogenário realizador, ator e escritor polaco Jerzy Skolimowski é um burrinho que vive num circo em que entra num número com uma artista que o adora e o mima, embora o diretor do mesmo já não seja tão simpático para o animal. Após uma manifestação de ativistas dos direitos dos animais, EO é apreendido, levado para longe do circo e posto numa fazenda, acabando por se lançar numa jornada pela Polónia que o conduzirá até Itália. Homenagem a Peregrinação Exemplar, de Robert Bresson, e manifestação de amor aos animais e à natureza por parte do cineasta e da sua parceira de escrita, Ewa Piaskowska, EO é ainda um ensaio cinematográfico, uma proposta de cinema experimental, além de uma história discreta e subtilmente moral, em que os momentos, paisagens e episódios realistas alternam com ambientes e sequências de natureza surreal e recorte sobrenatural. O filme impressiona pela consistência inventiva e audácia formal manifestada por Skolimowski, que aos 85 anos, parece ter voltado aos seus tempos de realizador jovem e arrojado da Nova Vaga polaca.

Great Yarmouth: Provisional Figures
De Marco Martins

Partindo de um espectáculo da companhia Arena Ensemble que Marco Martins fundou com Beatriz Batarda, esta fita passa-se antes do Brexit, em Great Yarmouth, entre os migrantes portugueses que ali vão trabalhar nas fábricas de processamento de aves. Batarda interpreta Tânia, casada com um inglês e que já trabalhou na indústria das aves, mas agora negoceia com as fábricas a contratação dos seus compatriotas, orientando-nos na burocracia e alojando-os nos hotéis decadentes do marido que ela gere. Aqueles chamam-lhe “Mãe”, embora o que há de maternal nela seja mais superficial e oportunista do que outra coisa. Não há que confundir o naturalismo fantasmagórico de Great Yarmouth: Provisional Figures com miserabilismo exibicionista. Marco Martins não rodou um filme de “denúncia” militante, mas de exposição e descrição do desespero resignado daqueles trabalhadores portugueses, dos quais uma compatriota se aproveita. Beatriz Batarda transfigura-se no papel de uma Tânia duríssima e determinada, mas sugerindo que há nela uma capacidade de compaixão e um desejo sincero de ajudar, reprimidos em nome da inflexível vontade de melhorar a sua condição e abandonar para sempre aquele mundo de sombras, sordidez e gelo no ar e nas almas.

As Oito Montanhas
De Felixvan Groeningen e Charlotte Vandermeersch

Adaptado do romance do italiano Paolo Cognetti, As Oito Montanhas, dos belgas Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, é um daqueles filmes que se tornam cada vez mais raros. Através da história da amizade de juventude, depois rompida e mais tarde reconstruída, entre um rapaz da cidade, Pietro, e outro das montanhas, Bruno, a fita consegue incluir no mesmo abraço, e ao longo de quase duas horas e meia que não se sentem passar, a amizade, a família e o amor, os contrastes entre a cidade e o campo, os valores do montanhismo, o sentimento das raízes e a sua vivência, os conceitos de pertença e de alienação, e a relação diversa das pessoas com a paisagem em que nasceram ou escolheram para passarem parte das suas vidas. Os dois realizadores nunca forçam a nota dramática, que faria cair a fita no sentimentalismo lacrimal, nem o gesto visual, que o conduziria à romantização ou ao exibicionismo da magnificência natural do Vale de Aosta. As Oito Montanhas  limpa os olhos e toca na alma.

Suzume
De Makoto Shinkai

No Japão, já chamam a Makoto Shinkai “o novo Miyazaki”. Não faz sentido, porque o realizador tem um universo visual e narrativo próprio, uma coleção de temas recorrentes, uma identidade e uma estética cinematográficas, e um sentido do maravilhoso e do tremendo, que não se confundem com quaisquer outros. E que em Suzume Shinkai volta a explanar com deslumbrante eloquência. Fantasia exuberante com uma fina camada de verniz romântico, história de descoberta familiar e filme-catástrofe intimamente associado à história traumática do Japão com os tremores de terra, Suzume tem pessoas encerradas por feitiços em cadeiras de criança, gatos sobrenaturais que são ao mesmo tempo deuses e chaves mágicas, estranhos fenómenos com auroras boreais e arco-íris simultâneos, e manipulações do espaço e do tempo. Que coexistem com um um sentido de humor excêntrico, uma descrição saborosamente pormenorizada do Japão contemporâneo e uma particular atenção à natureza e aos fenómenos meteorológicos, associados aos estados de espírito e à temperatura emocional das personagens. E não falta uma homenagem ao mestre Miyazaki.

Missão: Impossível — Ajuste de Contas (Parte Um)
De Christopher McQuarrie

Já há muito tempo que os enredos dos filmes da série Missão: Impossível deixaram de fazer sentido. Vamos vê-los pela pura e intensa ação (física, aérea, aquática, rodoviária, ferroviária) encenada, desenvolvida, orquestrada e propulsionada até ao seu expoente máximo, capitaneada por um Tom Cruise que substituiu o seu Ethan Hunt como protagonista dos filmes e se transformou no verdadeiro herói destes, pela forma como desafia a gravidade e arrisca a vida em cada um, na sua vontade de querer ir sempre mais longe nas sequências espectaculares e fazê-las sem recurso a “duplos”. Desta vez, o vilão é um programa de Inteligência Artificial que desenvolveu consciência própria e infiltrou os sistemas computacionais globais. Este “macguffin” lança o filme, composto de um tenso prólogo subaquático e de um punhado de sequências de ação engenhosas, robustíssimas, pulsáteis, fulgurantes e crescentemente audaciosas. Missão: Impossível — Ajuste de Contas (Parte Um), é a primeira metade do sétimo (e parece que derradeiro) título da série, que se tornou no espectáculo mais elaborado, empolgante, vertiginoso e indutor de taquicardia de que Hollywood é capaz por estes dias.

As Bestas
De Rodrigo Sorogoyan

Na aldeola da Galiza em que se passa esta fita do espanhol Rodrigo Sorogoyen, se há quem receba bem e aceite quem chegou de fora, há também quem ache que quem não nasceu, cresceu e sempre lá viveu, e lá tem a sua vida e os seus mortos, não é, nunca será, bem-vindo. Sobretudo se, como aconteceu com o recém-chegado Antoine (Denis Ménochet), impediu os locais de deitar mão ao dinheiro dado por uma empresa de eólicas para lá instalar as suas turbinas. Em As Bestas, o abismo crescente, e o crescente azedume entre o mundo da cidade e o do campo, e o advento de uma economia “verde” e “sustentável” que vem perturbar e até extinguir modos de vida, de subsistência e costumes ancestrais, funcionam como reagentes para preconceitos, frustrações, desesperos e invejas já existentes. Trabalhando a partir de um facto real, Sorogoyen evita o preto e branco moral e de caracterização das personagens, e assina um filme atual sobre velhos e novos ódios e ressentimentos, onde a violência é quase sempre subjacente ou verbal e psicológica, e o caminho para o inevitável confronto final é feito de ameaças, pequenas provocações, intimidações e humilhações.

The Quiet Girl — A Menina Silenciosa
De Colm Bairéad

Irlanda rural, anos 80. Cáit é a mais nova de várias irmãs que vivem com os pais numa quinta. A mãe está grávida e sobrecarregada de trabalho, e o pai mais interessado na bebida e no jogo do que nas filhas e na exploração. E enquanto o bebé não nasce, a silenciosa, humilde e observadora Cáit é enviada para a quinta de uns primos da mãe, que não têm filhos. Lá, a menina vai receber a atenção, o carinho e o amor que lhe faltam, afeiçoar-se à prima e em especial ao primo, e descobrir que há um segredo naquela casa em que se sente tão bem. Primeira realização de Colm Bairéad e finalista ao Óscar de Melhor Filme Internacional, The Quiet Girl — A Menina Silenciosa é uma fita inteligente, de poucas falas e sensibilíssima, toda feita à base da sugestão, do não-dito e dos silêncios expressivos, que trata temas melindrosos (a infância negligenciada e pobre de afeto, a morte de um filho) com enorme delicadeza, compreensão e um recato dramático que nunca compromete, antes realça, a força emotiva da história. No papel da paciente e carente Cáit, a límpida Catherine Clinch mete o filme no bolso e leva-o para casa.

A Fuga do Capitão Volkonogov
De Alexei Chupov e Natalya Merkulova

O capitão Volkonogov (Yuri Borisov) está sempre a cuidar da sua forma física. Essa atenção ao físico vai ser muito útil para o manter vivo, porque este filme de Natasha Merkulova e Aleksey Chupov passa-se em 1938, em Leninegrado, no auge das purgas estalinistas. E quando Volkonogov, que é um agente da NKVD (a antecessora do KGB), percebe que vai chegar a sua vez de passar de torcionário a torturado, e ser depois sumariamente executado, escapa-se, conseguindo manter-se sempre alguns passos à frente de quem o persegue para o matar. E depois de protagonizar um episódio sobrenatural, vai em busca de expiação, enquanto procura sobreviver. Ao mesmo tempo que acionam a mecânica do “thriller” de perseguição em regime de contra-relógio, e vão fazendo, pouco a pouco, com que a motivação de Volkonogov para expiar as atrocidades que cometeu deixe de ser egoísta, e ele vá abrindo os olhos para a monstruosidade que caracteriza o regime que serviu sem pestanejar, o casal de realizadores descreve, usando “flashbacks”, o funcionamento do sistema de terror totalitário comunista, expondo os princípios friamente desumanos e absurdos que a ele presidem. Este filme empolgante e álgido é como um pesadelo que se tem acordado.