Num processo de vacinação com pouco controlo por parte das autoridades de saúde (e da Segurança Social), sucedem-se os casos de pessoas vacinadas sem estarem no grupo prioritário (profissionais de saúde, utentes e funcionários de lares). O pároco de Valongo do Vouga e Macinhata do Vouga, no concelho de Águeda, também foi vacinado fora da vez. João Paulo Sarabando Marques recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19 a pedido da Fundação da Nossa Senhora da Conceição e foi vacinado naquele local juntamente com funcionários e utentes do lar. Diz que não pediu nada, mas a sua vacinação não deixa de ser à margem das regras.

À fundação em questão, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), de portas abertas desde 2002, coube a responsabilidade de indicar às autoridades de saúde competentes a lista de pessoas a serem vacinadas, a qual, segundo o próprio, incluía o nome do padre que visita com frequência aquele estabelecimento. “Foi a fundação que pediu para que fosse vacinado, para continuar a visitar os utentes”, esclarece ao Observador.

O padre de 59 anos, que já antes esteve contagiado com tuberculose, diz que não pediu nada: “Não fui vacinado por minha causa, foi a pedido da instituição, não foi para me proteger”. Adianta ainda que preencheu todos os papéis obrigatórios aquando da toma da vacina. “Sou responsável por duas paróquias e, em cada paróquia, sou responsável por um lar”.

“Confesso, rezo missa e estou junto das pessoas à conversa, tudo o que é próprio do acompanhamento espiritual. A saúde não é só física”, diz ainda. O pároco não é remunerado por estas atividades e não se considera um funcionário da fundação, a qual, apesar do nome estar diretamente ligado a uma figura católica, não tem cariz religioso.

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A situação que envolve o padre não está isolada e corresponde a mais uma denúncia de vacinação indevida contra a Covid-19 recebida pela Secção Regional do Centro (SRCentro) da Ordem dos Enfermeiros. O Observador tentou contactar sucessivas vezes a Fundação da Nossa Senhora da Conceição, mas não obteve qualquer resposta até à publicação do artigo. A denúncia destaca ainda que “familiares das enfermeiras que administraram a vacina e outros funcionários da instituição (que não lidam diretamente com utentes ou infetados com Covid-19) terão recebido doses da vacina contra a Covid-19”.

Ao Observador, o pároco afiança que, tanto quanto percebeu, a vacinação correu dentro da normalidade na Fundação da Nossa Senhora da Conceição e destaca que não recebeu qualquer sobra: “Não estou em sobra, estou no contexto daquilo que é a minha função. Apanhei a vacina na função do papel que desempenho nos lares. Aconteceu em Valongo, podia ter acontecido em Macinhata“.

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A  Administração Regional de Saúde do Centro (ARSC) esclarece ao Observador que “a elaboração das listas de vacinação é da responsabilidade dos lares e IPSS identificadas pela Segurança Social, de acordo com os critérios estabelecidos pela Direção Geral de Saúde” e que cabe à Segurança Social fornecer à ARSC “a listagem de lares com o número de utentes e profissionais a vacinar”.

Em resposta escrita, garante que não compete à Administração Regional de Saúde, nem aos profissionais que administram as vacinas, “questionar se se tratam ou não de utentes e profissionais afetos à instituição”. Relembra ainda que se encontra a decorrer uma auditoria ao processo de vacinação e que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) está a monitorizar o cumprimento do plano de vacinação contra a Covid-19. “Relativamente à identificação de pessoas e ao abrigo do Regulamento Geral de Proteção de Dados, não compete à Administração Regional de Saúde do Centro divulgar dados médicos sobre a inoculação ou não dos visados.”

Como o Observador já tinha escrito, o Ministério da Saúde também diz que não tem como controlar se quem é vacinado pertence ou não à instituição. Segundo a tutela, cabe aos lares sinalizar quem, dentro dos grupos prioritários, deve ser vacinado.

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Dirigente de IPSS recusa ter favorecido mulher e filha na vacinação

A SRCentro da Ordem dos Enfermeiros recebeu uma outra denúncia de vacinação indevida, desta vez na Associação de Solidariedade Social de Farminhão (ASSF), em Viseu. Numa carta anónima enviada à Ordem, pode ler-se que, no dia 18 de janeiro, foram vacinados os dirigentes e outros funcionários não prioritários daquela associação, que tem a seu cargo um lar de idosos e uma unidade de cuidados continuados (duas estruturas prioritárias na vacinação). Ao todo, receberam a vacina nove pessoas, entre o presidente da direção, Duarte Coelho, a sua filha, que é vice-presidente, bem como a mulher, voluntária na cozinha.

Ao Observador, Duarte Coelho confirma a informação e garante que quem foi vacinado vai frequentemente à instituição. “Eu vou todos os dias, estou em contacto com os trabalhadores e até com os utentes. Falo com diretores técnicos”, justifica, acrescentando que se considera um “dirigente ativo”. Recusa que tenha tido intenção de beneficiar a família e frisa que a filha chegou a ajudar no lar durante o surto que começou em dezembro. “Não havia pessoal para trabalhar. Alguns membros da direção e outros voluntários foram lá dar comida, como a vice-presidente, que esteve na lavandaria a lidar com roupas infetadas, a fazer camas, a desinfetar”, explica.

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Além do nome de Duarte Coelho, na lista inicial de vacinação, enviada em dezembro às autoridades de saúde, constava o nome do tesoureiro e do vogal. Como sobraram doses, o lar terá recebido a indicação de que deveriam ser usadas “em pessoas que estivessem ligadas, de alguma forma, à instituição ou que tivessem comorbilidades”. Foram vacinadas a mulher e a filha de Duarte Coelho, mas também a diretora executiva, o presidente da assembleia-geral e duas funcionárias da secretaria, uma das quais de baixa, mas que, segundo o responsável, voltará em breve à instituição.

O argumento do contacto direto com trabalhadores e utentes não é o único invocado por Duarte Coelho. O responsável alega que a informação veiculada, no início de dezembro, pela Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) dava a entender que haveria espaço à vacinação dos dirigentes. Duarte Coelho serve-se de um editorial de uma revista da CNIS assinado pelo presidente da confederação, Lino Maia, a 9 de dezembro. Nesse artigo, lia-se que no primeiro grupo do plano de vacinação contra a Covid-19 “não são referidos os dirigentes voluntários e dedicados dos Lares, lacuna que já foi identificada e que se deseja ultrapassada“. Destas palavras, Duarte Coelho entendeu que “a situação estava a ser resolvida e que seríamos incluídos“, explica ao Observador.

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O surto no lar foi dado como extinto esta segunda-feira, pelo que já foram feitos pedidos para prosseguir com a vacinação dos utentes e dos funcionários, em articulação com as autoridades de saúde. Duarte Coelho, por sua vez, vai tomar a segunda dose no dia 8 de fevereiro. “E com muito orgulho, porque mereço“.

A orientação da discórdia

Duarte Coelho diz que há uma outra orientação mais recente da CNIS, de final de janeiro, que, na sua interpretação, lhe daria razão. Essa orientação tem sido usada por outros dirigentes como justificação para terem sido vacinados — como no caso do Lar de Idosos de Portimão, noticiado pelo Observador, onde elementos dos órgãos sociais receberam a vacina.  Só que a confederação diz que essa interpretação não está correta.

Num email enviado a um lar por uma união distrital das IPSS, que pertence à CNIS, com a data de 26 de janeiro, é feita uma recomendação “para evitar alguma incompreensão durante o processo de vacinação”. A CNIS “pede que seja seguida escrupulosamente a seguinte ordem:

– 1.º utentes

– 2.º colaboradores (trabalhadores)

– 3.º pessoas que estão em contacto direto com utentes ou trabalhadores na instituição (Dirigentes ativos).”

Ao Observador, o presidente da Assembleia-geral da CNISS, José Batalha, esclarece que, com essa orientação, a intenção era explicar que os dirigentes só devem ser vacinados mais tarde, numa terceira fase, depois dos utentes e dos funcionários dos lares. E não numa fase, em conjunto com utentes e colaboradores. “É inquestionável que em primeiríssimo lugar têm de estar os utentes. Depois, em segundo lugar, os colaboradores ou trabalhadores diretos, as pessoas que efetivamente prestam serviço nos lares, que são os auxiliares de ação direta ao serviço. Depois, num terceiro momento, que provavelmente coincidirá que a generalidade das vacinas, todas as outras pessoas que estão na instituição e que, de alguma forma também estão em contacto”, como os dirigentes ativos. No caso de haver sobras, já admite que outras pessoas, além dos utentes e trabalhadores diretos, possam ser vacinados.

Em declarações ao Observador, Ricardo Correia de Matos, presidente do Conselho Diretivo da SRCentro, da Ordem dos Enfermeiros, apela a que os profissionais responsáveis pela vacinação se recusem a vacinar quem suspeitem que não está no grupo prioritário, e reportem ao superior hierárquico.