No debate dos partidos sem assento parlamentar que se candidatam às eleições legislativas, o líder da ADN, Bruno Fialho, foi a voz de proa na contestação à pandemia. O presidente da Alternativa Democrática Nacional é um conhecido opositor das medidas de combate à pandemia e o partido que lidera, criado em setembro (a partir do extinto PDR, que havia sido fundado por Marinho e Pinto), tem várias relações com os movimentos negacionistas — e tem feito dessa a sua principal bandeira de campanha no caminho para as legislativas de 30 de janeiro.
O debate, que decorreu na noite de terça-feira em direto na RTP, juntou os líderes dos 11 partidos sem assento parlamentar que vão disputar lugares no Parlamento em vários círculos eleitorais portugueses, mas Bruno Fialho foi o único a não comparecer fisicamente. Juntou-se à distância e fez questão de abrir o debate explicando a ausência: recusou fazer um teste à Covid-19 por considerar a medida “ilegal”. Durante o debate, desacreditou múltiplas vezes a própria existência da pandemia e até prometeu que a sua primeira iniciativa legislativa seria “decretar o fim da pandemia”.
Mas foi quando falou da mortalidade provocada pela pandemia que Bruno Fialho cruzou definitivamente a barreira do rigor factual e entrou no campo dos factos inventados. “Todos podemos errar”, disse Fialho. “Eu, por exemplo, também caí nos engodos que foram feitos pelos governos deste mundo e pelo Governo português, e acordei. Nós, quando acordamos, sentimos uma revolta ainda maior e por isso é que combatemos com muito mais objetividade.” E garantiu aos presentes: “Não houve um excesso de mortalidade em Portugal por causa do Covid.”
Trata-se, porém, de uma falsidade evidente. A base de dados do SICO (Sistema de Informação de Certificados de Óbito), uma ferramenta de centralização de informação da Direção-Geral da Saúde que está disponível online, permite-nos perceber esta realidade. Basta olhar, a título de exemplo, para o gráfico da mortalidade geral em Portugal, que reúne dados sobre a mortalidade diária ao longo do ano, registados em Portugal entre 2009 e 2022. A sobreposição das linhas deixa bem clara uma tendência média de maior mortalidade natural nos meses de inverno — mas também permite perceber os momentos de pico, em que se registou uma mortalidade superior à média.
Por exemplo, o pico de mortalidade registado no verão de 2013 (no gráfico, o pico da linha azul em julho) reporta-se à forte onda de calor ocorrida nesse ano, que levou a um grande excesso de mortalidade, noticiado na altura. Outro pico bem visível no gráfico refere-se a agosto de 2018 (no gráfico, o pico da linha verde em agosto), relacionado com uma outra fortíssima vaga de calor — nesse verão, foram registados alguns dos dias mais quentes das últimas duas décadas em Portugal e o grande aumento da mortalidade foi notícia na época.
Mas o pico de mortalidade mais impressionante é, sem qualquer dúvida, a grande anomalia registada na linha cor-de-rosa na parte mais à esquerda do gráfico. Trata-se da linha referente ao ano de 2021, quando a mortalidade em Portugal esteve muito acima da média durante praticamente um mês, entre meados de janeiro e meados de fevereiro. Nesse período, houve dias em que se registaram mais de 700 óbitos por dia no país, um valor que é quase o dobro dos valores médios registados habitualmente naquele mês (a rondar os 400 nos anos anteriores).
Trata-se de um pico de mortalidade que corresponde, justamente, ao primeiro grande pico da pandemia da Covid-19 em Portugal: quando, ainda no arranque do processo de vacinação contra a Covid-19, a variante Delta levou a que se registassem mais de 10 mil casos de infeção por dia durante vários dias consecutivos entre o final de janeiro e o início de fevereiro daquele ano (com um pico acima dos 16 mil casos no fim de janeiro), e, sobretudo, que levou o número de óbitos a ultrapassar os 300 por dia.
Aquele foi o último pico da pandemia em Portugal antes da distribuição em massa da vacina contra a Covid-19, que decorreu ao longo do ano de 2021. Como resultado desse processo vacinal, o novo pico da pandemia, que o país atravessa atualmente devido à difusão da variante Ómicron, tem provocado máximos históricos de contágios (esta quarta-feira, o número de novos casos ultrapassou os 52 mil), mas o número de internados e de mortes está bem abaixo do cenário trágico do início de 2021: esta quarta-feira, o boletim da DGS dava conta de 33 mortes, cerca de um décimo do máximo registado no final de janeiro do ano passado.
Fica, assim, comprovado que, ao contrário do que Bruno Fialho defendeu no debate, a pandemia de Covid-19 provocou efetivamente um excesso de mortalidade em Portugal — realidade que o Observador, de resto, já noticiara antes.
Depois de afirmar que “não houve um excesso de mortalidade em Portugal por causa do Covid”, Bruno Fialho seguiu recorrendo a um argumento que já havia sido desmentido antes. “Recordo o processo 525/21.4BELSB, em que há uma sentença que prova que apenas 152 pessoas é que morreram por Covid”, disse Fialho, aludindo a um acórdão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que, efetivamente, existe — mas que foi profundamente desenquadrado para efeitos retóricos. Na verdade, trata-se de um acórdão que afirma, com efeito, que foram emitidos 152 certificados de óbito pelos médicos que trabalham sob tutela do Ministério da Justiça e cuja causa de morte foi a Covid-19 — ou seja, 152 pessoas que foram autopsiadas pelos médicos do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses por se suspeitar da existência de crime associado à morte, acabando por se concluir que a causa da morte foi o coronavírus. O documento não se refere, evidentemente, à totalidade das mortes atribuídas à Covid-19 em Portugal (que, até esta quarta-feira, totalizavam 19.413). Esta informação já foi verificada pelo Observador, num fact-check que pode recordar aqui.
Conclusão
Ao contrário do que Bruno Fialho tentou defender no debate de terça-feira, houve realmente um excesso de mortalidade em Portugal associado à Covid-19 — um fenómeno que tem ocorrido ao longo de toda a pandemia, mas que foi particularmente visível em janeiro e fevereiro de 2021, durante o pico da variante Delta, antes da distribuição em massa da vacina.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO