Terá sido uma boa solução celebrar o 25 de Abril no Parlamento, ou dever-se-ia ter adoptado um modelo diferente, alegadamente mais em consonância com o estado de emergência que se aplica à generalidade dos cidadãos? Esta parece ter sido a pergunta  que tem dividido as opiniões e motivado acesa polémica entre nós.

É legítimo e saudável que as opiniões tenham divergido. O que importa é que o debate sobre o modo de celebração do 25 de Abril foi livre e aberto. O próprio formato das celebrações que foi por fim adoptado resultou de um processo gradual de adaptação às críticas públicas que foram feitas ao formato inicialmente anunciado. E o Presidente da República proferiu um dos melhores discursos do seu mandato, dirigindo a todos os Portugueses um eloquente elogio da liberdade sob a lei.

No 46º aniversário do 25 de Abril, julgo que é oportuno recordar esta crucial distinção entre resultados e processos. Acompanhei com desconforto algum confronto ardente sobre “o modelo certo” para a comemoração do 25 de Abril. Começaram a surgir acusações de que quem era contra a celebração no Parlamento era contra o “regime” criado pelo 25 de Abril. E, do outro lado, de que quem era a favor da celebração no Parlamento era defensor de um “regime oligárquico”. Alguns chegaram  à vulgaridade de dizer que precisamos de “outro regime e de outro 25 de Abril”.

Lamento ter de recordar que as discussões sobre “mudanças de regime” e sobre “revoluções” são em regra expressão de culturas políticas primitivas que ignoram a experiência ancestral do usufruto da liberdade. As culturas e os povos que usufruíram mais duradouramente da liberdade em regra desconfiam (para dizer o mínimo) de discursos ardentes sobre “mudanças de regime” e sobre “revoluções”. E têm boas razões empíricas para essa desconfiança.

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A experiência do usufruto da liberdade foi revelando, para aqueles que souberam preservá-la, que a liberdade é acerca de processos e não acerca de resultados. Liberdade é acerca de garantias legais à vida, à liberdade e à busca da felicidade, para usar as palavras da Declaração de Independência americana de 1776, inspiradas na revolução inglesa de 1688 e na Magna Carta de 1215. Nada aí é dito sobre resultados. Nada é garantido sobre o “modelo”, ou sobre o chamado “projecto de sociedade” a atingir; nada é dito sobre garantias de que as soluções adoptadas num ambiente de liberdade necessariamente conduzam aos resultados “certos”. Apenas é garantido que esses resultados poderão sempre ser criticados e novas propostas poderão ser apresentadas.

As condições que propiciaram a “revolução” do 25 de Abril de 1974 foram aliás simplesmente geradas pelo primitivismo do regime anterior  — que ignorava a distinção entre regras e resultados. Os seus promotores acreditavam saber que o seu modelo final de sociedade era o modelo certo — o que, em si mesmo, pode ser respeitável. Mas ignoravam a distinção entre modelos (ou resultados) e regras. Porque não respeitavam regras decentes de concorrência entre modelos rivais, acabaram por tornar inevitável a “revolução” do 25 de Abril de 1974 — a qual, em condições normais de usufruto da liberdade de concorrência, teria sido simplesmente desnecessária. A banal liberdade de expressão e a banal alternância tranquila de maiorias parlamentares rivais teriam tornado a “revolução” do 25 de Abril simplesmente desnecessária.

Aconteceu que, logo após o 25 de Abril, vários sectores, (mal) educados pela asfixia processual do regime anterior, quiseram impor outro regime fundado em resultados, não em processos (sobre os quais, à semelhança do regime anterior, tudo ignoravam). Refiro-me naturalmente aos ardentes seguidores da superstição “Fascismo ou Revolução”. Por outras palavras, a simples possibilidade de uma democracia liberal, fundada em regras decentes de liberdade de consciência e de livre concorrência, era — premeditadamente e/ou por simples ignorância — taxativamente excluída (como, aliás, acontecera no regime anterior).

Esta primitiva reedição por uma certa “esquerda” arcaica da primitiva confusão de uma certa “direita” arcaica entre resultados e processos levou à ameaça de uma nova ditadura durante o PREC. O 25 de Novembro de 1975 derrotou a ameaça de nova ditadura em nome dos “resultados certos” e restabeleceu a simples promessa de liberdade ordeira sob a lei do 25 de Abril de 1974.

Foi esta promessa de liberdade ordeira do 25 de Abril, reafirmada pelo 25 de Novembro, que acabámos de experimentar no debate sobre o modo de celebração dos 46 anos do 25 de Abril: quem discorda dos resultados pode continuar a discordar e a exprimir livremente essa discordância. Por outras palavras, não precisamos de “mudanças de regime”, nem de revoluções, nem de contra-revoluções.

Neste mesmo 25 de Abril de 2020, foi assinalado um outro aniversário: a edição 10 mil da revista The Spectator, fundada em Londres em 1828. Os próprios editores descobriram agora que é a revista mais antiga do mundo. Muito pode e deve ser aprendido com a singular longevidade da Spectator (a que voltarei noutra ocasião). Mas um ingrediente dessa longevidade é certamente inegável: não há “Revoluções” em Inglaterra desde 1688, quando a Gloriosa Revolução restaurou os princípios constitucionais da Magna Carta de 1215 e proclamou como seu principal objectivo “tornar desnecessárias novas revoluções”.

Como recordava insistentemente a historiadora americana Gertrude Himmelfarb, “o mistério da Inglaterra moderna (a famosa expressão de Helie Halévy) não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recorrer à Revolução.”

Por outras palavras, enquanto noutras paragens se sucediam ardentes Revoluções e ardentes Contra-revoluções, em Inglaterra discutia-se livremente no Parlamento e no Hyde Park Speaker’s Corner — e podia ler-se tranquilamente The Spectator… de preferência com uma chávena de chá, sempre pontualmente servido às 5.