A National Commission to Investigate the January 6 Attack on the United States Capitol Complex, usualmente conhecida pela Comissão 6 de Janeiro (Com6jan), tem feito aquilo para o qual foi criada, e que se encontra plasmado no seu nome: investigar o ataque ao Capitólio, que aconteceu no dia 6 de janeiro de 2021, que levou à disrupção da contagem dos votos do Colégio Eleitoral, à invasão da Câmara do Senado, e ao falecimento de agentes da autoridade e atacantes. A legalidade da Comissão tem sido reforçada repetidamente com pareceres jurídicos de tribunais federais, que têm de responder a tentativas de anulação de intimações judiciais, ou de recusas a ordens para entrega de materiais que podem estar relacionados com os assuntos sob jurisdição da Comissão. Similar (que não igual, afinal o tipo de audiência que existe em 2022 é bem diferente de que existia em 1973) às Audiências Watergate, o que já foi apresentado nos três dos sete momentos públicos previstos tem causado furor, consternação e preocupação.

Depois de, na primeira sessão, ter sido explicado como foi idealizado, preparado e posto em execução o ataque ao Capitólio (o cerne da investigação), nas duas últimas audições, a Com6jan tem exposto, com grande detalhe e rigor, o quanto o antigo Presidente dos Estados Unidos sabia que tinha perdido legitimamente as eleições. A trama que montou para explorar essa mentira e alimentar a ideia de que lhe tinha sido roubada uma vitória legítima. E as teorias fabulistas, não constitucionais, e eventualmente criminais, a que recorreu para pressionar o seu Vice-Presidente a cometer um ato que levaria os Estados Unidos a uma crise constitucional nunca experimentada, e que podia resultar em violência nas ruas, estados de sítio e intervenções militares.

Já se conheciam, via imprensa, as pressões (e ameaças) para “serem encontrados votos”, para que as Comissões de Certificação de resultados eleitorais não aceitassem os resultados eleitorais como válidos, para que as Legislaturas nos Estados que eram contestados se intrometessem nos processos eleitorais (que devem ser apartidários e apolíticos). Porém, agora temos o resultado de investigações no circulo interno da Casa Branca, sendo que “mais próximo, impossível” (a não ser que o antigo Presidente seja deposto). Desde o Procurador-geral, advogados, conselheiros da Administração Trump e da Casa Branca, responsáveis pela campanha para a reeleição, e até mesmo à filha e genro, o quadro que se tem desenhado é de um homem totalmente desvairado, encurralado, obstinado e transgressor. Incapaz de aceitar a verdade dos factos, partidário de teorias de conspiração, conivente com ideias aberrantes, e rodeado por fanáticos e charlatões.

Bill Stepien, o gestor da campanha, William Barr o Procurador-geral, Jason Miller conselheiro sénior, Ivanka Trump, Richard Donoghue, Procurador-geral interino, Procuradores-gerais em alguns dos Estados, todos disseram, de uma forma ou de outra: “Sr. Presidente, não há qualquer indício de que tenha havido fraude, você perdeu, e perdeu por muitos, as teorias da conspiração que o animam são fantasias sem qualquer base na realidade”. Ou para ser mais preciso, “idiotices, estupidezes, disparates completos, bullshit” (William Barr). No entanto, estes membros da Equipa Normal não conseguiam competir com a Equipa Rudy: Giuliani, antigo mayor de NY, Sidney Powel, advogada e ex-Procuradora, e Peter Navarro, o antigo assessor para o comércio. Satélites italianos, servidores na Alemanha, Hugo Chávez nos softwares para a contagem de votos, boletins fantasma e pessoas mortas. Porém, se tivesse ficado só por aí, só seria cómico se não fosse tão perigoso. No entanto, havia um plano, real e sério, para subverter o resultado das eleições dentro do Capitólio, e que corria em paralelo (e talvez em concordância), com a turba insurreccionista no exterior.

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Para além de outras tentativas conhecidas para anular o voto popular, e que ainda serão apresentadas pela Com6jan, ficaram a conhecer-se as principais movimentações nos dias que antecederam o ataque à democracia, lideradas pelo advogado John Eastman, a que Trump deu ouvidos exatamente por propor um plano para roubar a eleição, e instalar um presidente não democraticamente eleito. Para o plano Eastman acontecer, tudo passava pelo Vice-Presidente Mike Pence. Pence teria, durante a certificação dos votos do Colégio Eleitoral no dia 6, de “reenviar” as Certidões dos Resultados Eleitorais para as Legislaturas de (pelo menos) cinco estados, devido à existência de “Certificados alternativos” (falsos e ilegais) para que os legisladores (maiorias Republicanas) pudessem confirmar as existentes, ou certificar as alternativas. Ou então, simplesmente, rejeitar as Certidões, enviando a eleição para a Casa dos Representantes no Governo Federal que, ao também ter uma maioria de delegações Republicanas, atribuiria a vitória da eleição Presidencial à Campanha Trump/Pence.

Foi a recusa de Pence de aceitar o esquema (apoiado pela sua equipa de juristas e de assessores), que fez com que a contagem dos votos tivesse acontecido na madrugada depois do ataque, e a transferência de poderes tivesse sido concretizada, como historicamente tem acontecido nos Estados Unidos, mas desta vez sem ter sido de uma forma pacífica. Apesar da função da Com6jan ser de apresentar os factos que justifiquem propostas legislativas, algumas das descobertas têm sido vitais para entender as motivações, e ações do Presidente derrotado.

Apesar de saber que tinha perdido uma eleição justa e livre, a promoção da grande mentira – que a vitória lhe tinha sido roubada – fez com que amealhasse 200 milhões de dólares em donativos para “promover a integridade eleitoral”, apesar de o dinheiro ter ido para os seus bolsos ou para pagar o silêncio de coconspiradores. Conhece-se melhor qual o nível de articulação entre a Administração cessante e grupos paramilitares de extrema-direita e de supremacia branca. E confirmou-se, uma vez mais, a total falta de interesse ou de empatia de Trump pelos homens e mulheres, sob o seu comando como Presidente, e a decisão de nada fazer como Comandante em chefe do aparelho policial e militar da República, enquanto a sede de poder dos Estados Unidos era atacada pelos seus apoiantes.

Nestas primeiras três audiências, para além dos momentos dramáticos e intensos, curiosamente, foi a testemunha mais deliberativa, mais compassada e mais sisuda que disse o mais importante. Michael Luttig é um antigo juiz federal, um baluarte do movimento conservador, um dos membros da equipa legal que aconselhou George W. Bush no caso Bush v. Gore, e que foi convidado por Mike Pence para ser seu conselheiro durante o processo de certificação da eleição de 2020. O Juiz Luttig deixou aquele que deve ser o recado mais importante (e algo repetidamente enfatizado neste espaço no Observador) que “Se o vice-presidente dos Estados Unidos tivesse obedecido ao presidente dos Estados Unidos, a América teria mergulhado, imediatamente, no que seria equivalente a uma revolução dentro de uma crise constitucional paralisante“, e que mais “alarmante ainda é que o ex-presidente promete que sua reeleição não será roubada da próxima vez, e os seus aliados no Partido Republicano prometem o mesmo.

Ainda há muito mais para o público americano e aqueles que se preocupam com o futuro do país, verem através das audiências da Com6jan. Ainda haverá muitos mais momentos de choque, ira e desgosto. Porém, o mais importante já foi dito pelo Juiz Luttig: os inimigos internos à Constituição Americana não estão dissuadidos, e anseiam fazer o mesmo que fizeram em 2020, mas em 22 e 24.

É necessário que os defensores da democracia liberal, que tem sido um dos melhores produtos do experimento americano, e que tanto tem servido como um “farol” para todos os que desejam conseguir o mesmo, consigam punir os prevaricadores, reforçar os garantes do processo democrata e fortificar normas e leis. Sejam eles conservadores ou liberais, Democratas ou Republicanos, libertários ou sociais-democratas. A América encontra-se numa encruzilhada. O trabalho da Com6Jan pode ser um primeiro passo para impedir que esse país mergulhe no caos político e até mesmo social.